- A vida tem passado depressa e parece impossível completar toda a nossa lista de tarefas.
Mas, se o dia vai continuar tendo 24 horas, a gente pode encontrar caminhos para viver num compasso que nos traga mais satisfação e felicidade.
Ele estava logo à minha frente, e então apertei o passo para alcançá-lo. Queria dizer-lhe que ele andava muito, mas muito apressado e que, por isso, a gente mal tinha se visto nesse ano que se findou. Que esse passo desajustado dele não tinha me permitido realizar nem metade das atividades e compromissos que eu anotava, dia após dia, na minha agenda. Não me deixou assistir a todas as séries, ler todos os livros, responder todos os e-mails, curtir todas as fotos, estar com meus amigos, visitar minha família. Mas tão logo eu acelerava, ele acelerava também, como se não quisesse dar satisfação. Ele, o Tempo, parecia não ter tempo para mim. E eu acho que se você, assim como eu, vive nessas terras onde a rapidez é a premissa de tudo e os relógios estão nos vigiando por todos os cantos, também pode ter vivido a mesma cena e se sentido traído pelas horas, afundado nas listas de tarefas e desejos. A gente tentou segurar os ponteiros, mas não deu muito certo, não é? O que eu estou aprendendo – e isso leva um bocado de tempo – é que a gente nunca vai passar a perna no tempo, porque isso seria como passar a perna em nós mesmos. “O tempo é a substância de que sou feito. O tempo é um rio que me arrasta, mas eu sou o rio; é um tigre que me destroça, mas eu sou o tigre; é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo”, escreveu o argentino Jorge Luis Borges, um escritor que gostava de pensar sobre passado, presente, futuro. Mas, se o tempo é a gente mesmo, o que eu quero contar para você é que é possível ajustar o descompasso do nosso caminhar e aproveitar cada dia de verdade, deixando no passado a sensação de não estar vivendo o bastante e de não ter tempo para nada. “Que horas são?” talvez seja uma das perguntas que a gente mais se faça ao longo do dia, sem perceber que condicionamos a duração de cada experiência que vivemos à tirania de um relógio. “A invenção do relógio mecânico na Europa, no século XIII, foi a grande revolução na história do tempo, um evento que mudou a consciência humana para sempre”, escreve o historiador da cultura e professor australiano Roman Krznaric, em seu livro Sobre a Arte de Viver (Zahar). É desconcertante descobrir que nem sempre foi assim. Esse tempo como conhecemos, dividido em pequenas fatias iguais, é uma invenção social, algo que transformou a nossa vida mais do que a pólvora, a bússola, a imprensa. Mas, antes disso, a humanidade passou séculos sem se pautar pelas horas e minutos. “Sócrates inventou a filosofia sem saber se eram 3h10 ou 14h50. Leonardo da Vinci não ficou consultando seu relógio quando pintou A Última Ceia”, prossegue Krznaric. É, o relógio mudou o tempo. E é claro que essa tecnologia nos ajuda um bocado – como marcar um encontro com alguém? A que horas entrar e sair do trabalho? Mas aconteceu algo muito perverso durante a Revolução Industrial: o tempo virou coisa, mercadoria. Aí, entraram para o nosso vocabulário palavras como “gastar”, “poupar”, “desperdiçar” tempo. A substância daquilo que somos também passou a ter preço, afinal “tempo é dinheiro”. “Perder tempo” se tornou nosso maior medo e “ter mais tempo” virou a nossa busca eterna. O filósofo francês André Comte-S ponville, autor do livro O Ser-Tempo (Martins Fontes), aponta uma reflexão que não estamos acostumados a ouvir, mas que contém uma verdade importante. O tempo, em si, não é coisa. “Ele é passado, presente e futuro. Mas, se o passado já foi, e o futuro ainda não chegou, arrisco dizer que o tempo é o presente. É essa continuidade.” O que ele quer dizer é que, ainda que o tempo seja movimento, só temos o presente. Se me lembro do passado, lembro no presente. Se penso no futuro, o faço também no agora. Eu escrevo esta reportagem no presente, e você também a lê no presente. “Trata-se desse agora que nunca desaparece.” O problema é que a gente ainda vive como se o tempo fosse algo externo, que caminha num descompasso que não alcançamos. “Vivemos uma desconexão com ele”, me disse Gustavo Gitti, colunista de vida simples. “Alternamos entre ‘correr atrás do tempo’ (ansiedade, correria, distração, o ‘quase lá’) e ‘esperar o tempo chegar’ (tédio, depressão, ‘quando tal coisa acontecer, aí, sim...’). Não nos sentimos no tempo certo. É como assistir a um filme com áudio fora de sincronia, ou sentarmos meio tortos em uma cadeira. Não é gostoso.” Gustavo diz que a gente nunca vai ser capaz de relaxar de verdade dentro de uma sensação de “ter tempo”. Não importa se temos um minuto, uma hora, uma tarde, um mês. Ainda estamos muito fixados nessa ilusão de que o tempo é uma coisa, quase como uma caixa feita de horas e que vamos enchendo com mil tarefas. E, quando a caixa fica apertada demais para tudo o que a gente quer colocar dentro, vamos atrás de dicas e cursos de administração do tempo. Para Roman Krznaric, algumas dicas podem até ser úteis, como olhar o e-mail uma única vez por dia ou aprender a delegar tarefas, mas ainda não mudam profundamente a nossa relação com as horas. “A administração do tempo, na verdade, é uma ideologia que nos ensina a fazer coisas mais depressa e com mais eficiência, de modo a podermos enfiar cada vez mais coisas em nossos dias”, alerta Krznaric, cuja agenda do dia, ele diz, tem sempre um bom espaço em branco, onde ele está fazendo nada. “É meu tempo preferido, onde posso sonhar acordado”, me disse ele, por e-mail. Na caixa das tarefas que queremos fazer depressa, vão junto os momentos prazerosos que são o deleite da vida. É o almoço de dez minutos, onde o sabor da comida nem se aprecia. A visita cronometrada que fazemos aos nossos pais, incapaz de nos aprofundar em uma conversa. Costumo olhar com atenção aos pais que andam de mãos dadas com os filhos pequenos pela rua. Quase sempre eles estão em descompasso: o adulto tem o caminhar apressado, a criança segue atrás, puxada pela mão, enquanto tenta colocar os olhos nas belezas do dia que a gente já não enxerga mais. O jornalista britânico Carl Honoré passou por um momento assim, de descompasso com o filho, há alguns anos. “Na hora de contar história para dormir, eu lia tudo bem rápido. Pulava algumas frases, parágrafos, até mesmo uma página inteira. E meu filho conhecia a história, e então brigávamos”, conta Carl. “O que era para ser o momento mais relaxante, íntimo e carinhoso se tornava uma batalha entre o ritmo dele e o meu.” A história de Carl começou a mudar enquanto ele lia um artigo com dicas sobre como “poupar” tempo. Entre elas havia a sugestão de livros que faziam as crianças dormirem em um minuto. Carl ficou entusiasmado, mas em seguida teve um espanto: “Estou mesmo com tanta pressa que vou enganar meu filho com uma historinha de nada no fim do dia?”. Foi aí que ele, um viciado em velocidade, resolveu desacelerar. E criou, há pouco mais de dez anos, o movimento slow, um convite a desfrutar momentos com mais lentidão – ou melhor, com o devido tempo que aquela vivência merece. Carl reflete como o tempo é encarado como um recurso que acaba e que, se não usado, a gente perde. “Isso cria uma equação. Se ele acaba, então aceleramos, tornando cada momento de cada dia uma corrida em direção à linha de chegada. Uma linha que, no entanto, nunca alcançamos”, diz. É claro, nem sempre a lentidão é a resposta, ele diz, mas existe uma lentidão boa. As refeições que fazemos com a televisão desligada, um encontro que existe sem a duração das horas, e até quando podemos olhar com calma para os problemas do trabalho a partir de diferentes ângulos. Recentemente, Carl lançou o livro Solução Gradual (Record), em que discute como ansiamos por soluções rápidas para tudo: na política, na medicina, nos aplicativos de relacionamentos. “Eu ainda amo a velocidade. Gosto de esportes rápidos e nunca deixaria de praticá-los. Só que já não me sobrecarrego mais. Sinto que estou vivendo minha vida em vez de apostar uma corrida contra ela.” Voltar a nossa atenção para o momento presente como forma de nos reconectarmos também é o que sugere o escritor alemão Eckhart Tolle, autor de O Poder do Agora (Sextante). Em sua recente vinda ao Brasil, ele propôs que tentássemos nos colocar presentes inclusive nas tarefas mais triviais do cotidiano, as que parecem lentas ou aborrecedoras. “Mesmo quando você está esperando algo, use essa oportunidade para dar toda atenção ao momento presente, a apenas observar. No semáforo, no elevador, esperando na linha para falar com o banco, aguardando um voo... Use essa oportunidade para estar apenas no agora”, ele propõe. “Talvez você perceba que a sua mente não vai ficar muito feliz com isso, com esperar. Ela vai querer te contar uma história de que onde você está nesse momento não é um bom lugar. Ela pode reclamar dentro da sua cabeça ou, se tiver outra pessoa perto de você, ela pode reclamar em voz alta.” O resultado de se manter atento, ele diz, é que vamos encontrar uma percepção de que são esses pensamentos que estão nos dizendo que não deveríamos estar ali, por vezes nos jogando para outro tempo. “Quanto mais consciente você se torna do momento presente, mais vivo você se sente. E você se conecta com a essência do agora, que é onde tudo acontece.”
- Uma corrida contra a vida
- A casca inútil das horas
- Débora Zanelato - Vida Simples Digital