A arte é uma mentira
que nos faz perceber a verdade.
Ela é perigosa; sim,
e nunca pode ser casta; se é casta,
não é arte. (Pablo Picasso)
Esta é uma série sobre a força, a necessidade, a paixão da Arte. . . o poder da arte.
O apresentador Simon Schama nos apresenta sua escolha de artistas e obras de arte e nos conta porque a arte é tão importante.
O poder da grande arte, é o poder de nos levar à revelação e nos resgatar do nosso modo padrão de ver. Depois de um encontro com tal força, não olhamos para um rosto, uma cor, um céu, um corpo, mais da mesma maneira. Somos ajustados ao novo olhar: Uma visão.
Visões da beleza ou um estremecer de prazer são parte desse processo, mas assim também podem ser o choque, a dor, o desejo, a piedade ou até mesmo a repugnância.
Esse tipo de arte parece revolver os nossos sentidos e passamos a entender o mundo de maneira diferente.
a pintura ganha corpo
o criador de milagres
o tosco na sala dos ricos
registrando a revolução
tempestade como tema
pintura que vem de dentro
a arte moderna se torna política
a música do além na cidade do glamour
A grande arte tem péssimos modos. A silenciosa reverência da galeria pode levar você a acreditar, enganosamente, que as obras-primas são delicadas, acalmam, encantam, distraem — mas na verdade elas são truculentas. Impiedosas e astutas, as maiores pinturas lhe aplicam uma chave de cabeça, acabam com sua compostura e, ato contínuo, põem-se a reorganizar seu senso da realidade.
Não foi para isso que você entrou, foi? Ali está você, plantado no museu, domingo à tarde, pronto para receber uma dose exata de beleza — um tempo inocentemente passado com a magia de ilusões bidimensionais. Será que você não poderia simplesmente comer os morangos daquela travessa de prata? Sentir o aroma dos pinheiros naquela dourada encosta provençal? Ouvir o arroto daqueles beberrões holandeses? Tocar aquele chamalote? Afagar o flanco reluzente daquele corcel? Não, você não poderia. Mas seria errado imaginar, regalar-se com tais delícias, entregar-se à fantasia? Você entra na rotina, deixa a cor se aproximar, corre os olhos pelo desenho. Talvez siga as instruções dos fones de ouvido: um passo para o lado, olhar, escutar, andar; um passo para o lado, olhar, escutar, andar, a atenção conduzida pela voz confortantemente autoritária, uma voz de homem num terno caro, as informações enunciadas com certo pedantismo e racionadas com cuidado para você não se cansar tanto que deixe de visitar a loja de suvenires.
Mas então, por algum motivo, você sai do rumo, deixa a zona dos fones — e acontece: o estranho momento. Não há algo de incomodamente errado com a fruteira de Cézanne, assim torta sobre a mesa? Aliás, o tampo da mesa parece inclinado, em vez de horizontal, convidando a uma queda vertiginosa — um movimento que nunca se inicia realmente, mas também nunca para realmente. O que é que está havendo? Ou aqueles olhos de Rembrandt, num rosto que lembra um pudim desmoronado, fitando você? É um clichê, uma piada batida, uma projeção sentimental: o observador observado. Mesmo assim, você não consegue parar de olhar, sentindo-se acuado, incriminado, como se a culpa fosse sua. Desculpe, Rembrandt. As pessoas desaparecem. A parede da galeria desaparece. Você está nas mãos de um hipnotizador barato. Você se esforça para se safar, continua andando e dá uma espiada — por que não? — naquele nu de Ticiano, deitado diante de ondulosas colinas, e — epa — alguma coisa começa a acontecer, e não só em seus olhos. Ou então você se detém diante de uma colagem cubista, o tipo de coisa que você nunca entendeu bem e ainda não consegue entender, pelo menos do ponto de vista do prazer — mas o que importa? Você tenta e, sem perceber, uma parte de seu cérebro se põe a dançar ao dedilhado daquela guitarra, e fragmentos de jornal, cachimbos, bordas e planos meio difusos começam a mudar de lugar sem sequer pedir licença, entrando e saindo do foco, e você descobre que gosta disso. Você foi pego de novo, está perplexo. A vida acabou de se ajustar.
O poder da arte é o poder da surpresa perturbadora. Mesmo quando parece imitativa, a arte não reproduz o que há de conhecido no mundo visível, mas o substitui por uma realidade que é toda dela. Além de representar o belo, cabe-lhe destruir o banal. Seu método operacional envolve o processamento da informação pela retina, mas em seguida ela aciona um comando e gera um tipo alternativo de visão: um modo dramatizado de ver. O que nós sabemos ou lembramos a respeito de crepúsculos e girassóis e a forma que eles assumem nos quadros de Turner ou de Van Gogh aparentemente se situam em universos paralelos — e não é fácil dizer qual é o mais vívido, o mais real. É como se nosso aparelho sensorial tivesse passado por uma regulagem. Assim, não surpreende que, às vezes, fiquemos zonzos.
Mas a televisão não gosta de imprevistos. Filmar requer planejamento cuidadoso. Cada programa abordava uma crise na vida e na carreira de um artista, um momento problemático na criação de um quadro ou de uma escultura. Mas, enquanto nos encaminhávamos para esse momento crucial, contemplávamos outras obras, e isso geralmente me desestabilizava por completo. Visto ao vivo, e não numa pálida reprodução impressa ou numa vaga lembrança, um quadro que até então eu considerava um exercício de aquecimento para o grande número de repente ameaçava se tornar a atração principal. Corrigido o erro, eu fazia um escândalo, queria mudar o programa inteiro para encaixar a descoberta. Os diretores me ouviam até o fim e tentavam não torcer o nariz. Às vezes abriam espaço para o intruso; às vezes, não.
Houve o caso, por exemplo, de Raízes e troncos de árvore, que Van Gogh pintou em suas últimas semanas de vida, no verão de 1890 . Focalizados desde a perspectiva de um rato, a vegetação emaranhada, os troncos retorcidos, o verde sufocante criam, visualmente, tamanha sensação de enclausuramento que nos veda qualquer possibilidade de paisagem. Em termos espaciais e psicológicos, não há nenhum respiro, até porque as raízes — algumas semelhantes a garras e esqueléticas, outras metálicas e mecânicas — foram monstruosamente amplificadas, enquanto árvores miniaturizadas estão presas entre elas. Em cima é embaixo e embaixo é em cima; longe é perto e perto é longe. O que realmente vemos é, pois, uma imagem premeditada de desorientação, os gânglios do pintor precipitando-se pelo espaço.
Nunca algo parecido ousara, até então, apresentar-se como pintura. Mas no museu Van Gogh, em Amsterdam, entre as íris e os girassóis de sucesso, ninguém lhe dá muita atenção. O cartão-postal com a reprodução dessa tela tem pouca saída, e só quem pretende estrangular alguém há de querer comprar uma echarpe de seda com essa estampa.
Então, justamente quando eu pensava que tinha visto tudo, surpreendi-me com Turner. Numa tarde nublosa de fins do outono, estávamos gravando na Petworth House, em Sussex, onde vivia o conde de Egremont, um dos mais hospitaleiros clientes de Turner. No último andar da casa, encontra-se a biblioteca (com a porta trancada) que o pintor usava como ateliê. O guarda foi muito generoso em me deixar entrar e contemplar as paredes forradas de livros, tais como Turner as via — ou melhor, não via — enquanto trabalhava, e o cavalete a postos, em seu local predileto. Acompanhava a névoa de novembro o sussurro de seu fantasma, e talvez tenha sido por isso que num pequeno quadro da extensa galeria, no andar de baixo, vi algo mais que a Vista do canal Chichester , título pelo qual os vitorianos o conheciam. Essa é uma das quatro vistas de Petworth e arredores que Turner pintou como painéis decorativos, mas não se trata de mera topografia. Uma claridade feérica ilumina o parque, e cervos, com as galhas enredadas, lutam como uma encarnação mítica de guerreiros enfeitiçados.
A igreja no horizonte nos indica que estamos perto de Chichester ou, talvez, em outro lugar, totalmente distinto — na própria ideia, romanticamente fatalista, que o pintor maduro tinha da viagem da vida, por exemplo? Banha a cena uma luz tão estranha que a suspeita de que o canal seja algo mais que uma eficiente rota de madeira ou pregos se torna irresistível. No pequeno barco está um homenzinho de casaco preto e chapéu surrado, como os que o pintor costumava usar. Assim, talvez esse quadro não seja um Turner, mas o próprio Turner. Em 1827- 8 , quando elaborou essa obra, Turner atingira a meia-idade. Em ângulos retos com relação ao plano do quadro — a janela imaginária pela qual espiamos —, um navio fantasma desce o canal em nossa direção, misteriosamente impulsionado, já que as velas estão recolhidas e não há sinal de remos. Se esse navio é um veleiro comum, o Pequod do capitão Ahab é uma fábrica de bolhas. Mastros negros refletidos na água, o navio desliza em nossa direção, ominoso e inevitável. Assim, Canal Chichester se revela um autorretrato alegórico que, disfarçado de paisagem, se introduziu na galeria do cliente mais poderoso de Turner; um gesto atrevido e comovente.
E depois, mais inquietante que tudo, a aparição em Valletta, Malta. No fundo de uma sala comprida, o oratório dos Cavaleiros da Ordem de São João, numa catedral onde as paredes parecem se retorcer sob tantos entalhes de madeira e guerreiros barbudos jazem em túmulos revestidos de reluzentes mosaicos de madrepérola, Caravaggio, então um assassino condenado, pintou (como penhor de sua liberdade) a decapitação do já morto são João Batista. As figuras, em tamanho natural, estão retratadas com uma clareza tão assustadora que parecem incontidas em qualquer espécie de moldura. Temos a impressão de que podemos ir a seu encontro, no fundo da sala, e escalar seu espaço, no alto do oratório. A composição do quadro é assimétrica. À esquerda, formando um semicírculo, está um grupo de figuras que, em sua maioria, personificam as virtudes tradicionais da arte: beleza heroica, gravidade, autoridade. Não obstante, estão prestes a participar de uma carniçaria, degolando um cadáver. À direita, apenas uma corda pende na desolada penumbra do pátio e dois presos espicham o pescoço para olhar por entre as grades da janela. Um deles se parece com o pintor criminoso, porém Caravaggio está presente de maneira mais enfática no sangue que escorre do pescoço do mártir e forma sua assinatura; essa é uma das duas únicas obras que ele assinou. Portanto, o quadro perpetua o horror; o artista assina como réu; nós, seus cativos, arriscamos uma espiadela, assustados e, ao mesmo tempo, estupefatos, divididos entre consternação e admiração.
Essas três obras-primas não só registram a presença de seus autores, como se nos convidassem — ou nos desafiassem — a estabelecer uma relação direta com eles, mas também mostram os próprios artistas no interior de um drama criador: Van Gogh, o pintor fascinado com a natureza vicejante, sufocado pelas próprias criações; Turner, o poeta meditativo do vaivém da vida; Caravaggio, o cristão devoto e criminoso, que entende a redenção pelo sangue porque vivenciou seu derramamento. O poder da arte focaliza oito desses momentos de autodramatização, em que o artista, sob enorme pressão, empreende um trabalho extremamente ambicioso, no qual se incorporam suas crenças mais profundas. Todas essas obras são depoimentos pessoais; todas se propõem ultrapassar em muito o princípio do prazer. São obras que procuram mudar o mundo.
Elas não constituem a norma. Há muitas criações excelentes de artistas que preferiram o recato à heroica autodramatização e estabeleceram objetivos mais modestos para seu trabalho: imitar a natureza, representar o belo, ou ambos ao mesmo tempo. Contudo, a partir do Renascimento os artistas mais ambiciosos queriam ser mais que artesãos-copistas esforçados e engenhosos. A seus próprios olhos, eram fazedores, não imitadores. E ansiavam por se livrar de clientes desdenhosos que os viam como pouco mais que decoradores competentes. “Ele pensa que é o dono do mundo”, disse ao papa a mãe de Gianlorenzo Bernini. E para criadores tão pretensiosos, que julgavam possuir uma centelha de divindade, era importante que se reconhecesse sua arte como nobre; análoga à filosofia, à poesia ou à religião: uma necessidade humana, e não um luxo opcional. Essa apaixonada convicção os levou a afirmar a autoridade e o poder da arte perante a fatuidade dos detentores do poder institucional: papas, aristocratas, burocratas, nobres endinheirados e seus críticos submissos. Assim, a maneira como se desenvolveu o drama de sua vida criadora (escrito por eles mesmos ou por seus biógrafos) foi tipicamente combativa: um conflito com clientes obtusos ou seus lacaios, os críticos covardes e presunçosos. Os atos dessa peça são apresentados como provações que, com sua clarividência, o fazedor de arte, resoluto porém sangrando, podia superar, ainda que ele mesmo soçobrasse.
São esses momentos de alta tensão no drama da criatividade que O poder da arte pretende captar: obras-primas elaboradas sob forte tensão. E é um tique profissional do historiador da arte descartar esses dramas do momento da criação como um remanejamento trivial das fantasias românticas sobre o artista atormentado; a história mais batida do livro da musa; uma platitude moderna sobre o temperamento artístico que os velhos mestres não reconheceriam. E, naturalmente, é bem verdade que para cada Van Gogh existe um imperturbável Cézanne; para cada Jackson Pollock, um Matisse; para cada pintor impelido pelas fúrias, incontáveis pintores que trabalharam e viveram num estado de disciplinada serenidade. No entanto, a história do artista macambúzio, que desdenha as convenções, tem consciência de seus poderes divinos, é presa da melancolia, ofende-se facilmente, vive às turras com clientes tacanhos ou vaidosos e está cercado de rivais cuja mediocridade só se compara à própria malícia, começa séculos antes dos românticos oitocentistas. Na verdade, começa praticamente com dois textos sobre artistas do Renascimento: a autobiografia do ourives e escultor Benvenuto Cellini e a biografia de Michelangelo escrita por seu contemporâneo Giorgio Vasari.
Com relação aos poderes divinos de seu biografado Vasari não deixa dúvidas. O próprio Deus enviou Michelangelo à terra para exemplificar a perfeição em todas as formas de arte: pintura, escultura, arquitetura. Ao ver um de seus cartões, os operários o proclamam mais divino que humano. Michelangelo discute com papas e duques; realiza trabalhos hercúleos no alto de seu famoso andaime, pintando os afrescos da capela Sistina. E Vasari sugere que ele tinha consciência de seus poderes sobre-humanos, pois durante os meses que passou nas pedreiras de mármore, em Carrara, pensava em emular os antigos, esculpindo nas montanhas uma imagem colossal de si mesmo.
Com efeito, foram a estupenda versatilidade e a proeza excepcional de Michelangelo que incitaram Cellini a escrever sua extravagante autobiografia, Vita ( 1558- 66 ). Sua obra-prima, o bronze Perseu e a cabeça da Medusa ( 1545- 54 ), foi criada para um espaço na Loggia dei Lanzi, em Florença, onde a cabeça cortada e gotejante da górgona (uma façanha técnica de tamanha dificuldade, como Cellini se empenha em assinalar, que seus contemporâneos a consideravam irrealizável) deliberadamente confronta o Davi ( 1504 ) de Michelangelo. Sempre que possível, Cellini invoca o elogio de Michelangelo à própria obra, para que, quando pensasse no maior mestre do Renascimento, a posteridade pensasse também no ourives. A imortalidade se transmitiria.
Há uma diferença, porém. Vasari apresenta Michelangelo como um austero homem-deus em seu andaime, soberbamente distante das falhas das pessoas comuns. Já Cellini apresenta a si mesmo como uma criatura bem humana: uma diabólica encarnação de apetites carnais, o primeiro de uma linhagem de artistas que, por seu dom, se imaginavam além das convenções que governam a maioria dos mortais. Uma de suas primeiras lembranças de si mesmo é de um bebê segurando um escorpião pelas pinças e balançando-o alegremente diante de um avô horrorizado. Nunca saberemos se o fato é verdadeiro ou não, mas desde o início percebemos que Cellini quer ser visto como alguém que ri dos temores dos medíocres e dos pusilânimes. Portanto, não há nada que ele não faça ou não possa fazer. Além de ourives e escultor, é músico, poeta, soldado, espadachim, artilheiro. Dizer que sexo e violência correm à solta em suas páginas é atenuar a verdade. Cellini é um orgiasta impenitente e bizarro, consumindo homens, meninos, mulheres, moças, prostitutas, esposas — praticamente tudo que se move. Com algumas mulheres é brutal, até mesmo sádico. Catarina, uma de suas amantes, comete a temeridade de se casar, e Cellini executa uma tríplice vingança: faz a jovem cornear o marido, obriga-a a posar durante horas numa posição dolorosamente incômoda e a espanca. Quanto a seus homicídios e seus ataques violentos, não se mostra arrependido e até se compraz claramente em relatar suas façanhas com detalhes. Ofende-se facilmente quando acha que sua honra é questionada e não hesita em mandar às favas papas e príncipes quando bem entende.
Domina esse relato estarrecedor sua convicção de que seus apetites e impulsos são inseparáveis. O Benvenuto que esfaqueia pessoas e arrasta garotos para a cama é o mesmo Benvenuto que tem o necessário para fazer coisas inimagináveis em bronze. Ou pelo menos quer que acreditemos nisso. Afinal, gaba-se de que preferiria matar seus inimigos pela arte a matar pela espada — porém o instinto de aniquilar os que duvidam e os que zombam era o mesmo. Assim, sua vida se desenrola como uma série de luvas atiradas que ele apanha e joga na cara dos rivais com demoníaca energia. E aqueles triunfos hercúleos, obtidos em circunstâncias impossíveis, começam com a façanha de escrever sua autobiografia em prisão domiciliar, à qual, já cinquentão, foi condenado por atos de sodomia. Como lhe negam material de escrita, utiliza, segundo nos diz, o que tem à mão: transforma pó de tijolo em tinta e lascas da porta em penas. Assim, pode se iniciar a história do herói sanguinário, extremamente confiante nos próprios poderes e supinamente indiferente aos mortais tacanhos que cruzam seu caminho.
O famoso clímax do relato ocorre quando o escultor está prestes a fundir a estátua de Perseu e adoece tão gravemente que se julga moribundo. Acredita, porém, que pelo menos sua obra sobreviverá e será reconhecida como equivalente ao Davi de Michelangelo. No entanto, algo dá errado: o bronze liquefeito “talha”, a base da liga coagula. Um homem curvado como um “S” se apresenta ao mestre febril em seu leito de enfermo e anuncia a ruína de seu grande projeto. Cellini reage à diabólica aparição, levantando-se da cama para salvar do desastre o trabalho de nove anos. A cena se torna operística. Uma fornalha explode; uma tempestade desaba sobre a oficina. Duzentos pratos de estanho e panelas são jogados no fogo para que o metal derretido adquira a consistência adequada. Em meio a essa loucura, o superartista se mantém calmo e, naturalmente, Perseu é salvo, perfeito — a Vita garante que quem viu nunca esquecerá o modo sobre-humano como foi criado.
Nem todas as histórias que se seguem apresentam um grau tão elevado de megalomania. Mas todas se inserem numa tradição de artistas — de Caravaggio a Mark Rothko — que deliberadamente se posicionaram como heroicos paladinos do poder conversivo da arte. Cada história focaliza uma obra elaborada sob forte tensão — exercida por clientes (Rembrandt), decorrente da conjuntura política (David, Turner, Picasso), provocada por uma necessidade de reabilitação (Caravaggio, Bernini) e resultante de uma rigorosa concepção do que a arte deve ser e fazer (Van Gogh, Rothko). Cada um desses momentos pôs à prova a capacidade do artista de não só cumprir os termos da encomenda como de transcendê-la.
Ao dar conta do recado, cada um desses homens acabou virando uma nova página na história da arte para produzir algo sem precedentes. Alguns, como Rembrandt, Turner e Picasso, criaram momentosas pinturas históricas que constituem uma resposta tão completa aos desafios do momento que nem eles mesmos (e muito menos seus imitadores) conseguiriam repeti-las.
Assim, os dramas que formam O poder da arte são histórias pessoais e também histórias da arte (às vezes eu não percebia a diferença). O sucesso ou o fracasso de seus protagonistas envolvia elementos cruciais de nossa existência individual e coletiva: salvação, liberdade, mortalidade, transgressão, o mundo, nossas almas. Em seus vários e incomensuráveis aspectos, todas as obras aqui focalizadas são incrivelmente belas e nada têm de vergonhoso ou trivial. No entanto, a busca do efeito estético não foi o que fundamentalmente norteou sua criação — inclusive, ou sobretudo, no caso do abstrato Rothko. Picasso (que não era alérgico ao belo) expressou isso de modo mais incisivo quando afirmou que “os quadros não são feitos para decorar apartamentos; são armas de guerra”. O fato de grande parte de sua carreira, depois de Guernica, resumir-se em criações que funcionam perfeitamente bem como decoração interior indica que são atípicos esses dramáticos episódios de consumada vocação pública. Mas, quando ocorrem, em momentos iluminados, resultam em obras que nos dizem alguma coisa sobre o mundo, sobre estar na própria pele, que não encontramos em nenhuma fonte mais prosaica de sabedoria. E com isso respondem, de maneira irrefutável e majestosa, à persistente pergunta de todo relutante recruta da arte (tenha ele nove ou 59 anos) que, arrastado museu adentro, suspira profundamente, louco para saber os resultados do futebol ou para aproveitar uma liquidação de roupas: “Tudo bem, mas para que serve a arte realmente?”.
- O PODER DA ARTE (1-8) - Caravaggio (Partes)