- O que aprendi ao cuidar do meu pai. As lições de paciência, tolerância e amor de uma filha que precisou se dedicar integralmente ao pai doente.
A gente passa boa parte da vida sendo cuidada pelos pais – pelo menos é assim que deveria ser. Mas um dia o papel pode se inverter e, no início, isso nem sempre é fácil. Para mim, essa nova configuração teve data: 21 de agosto de 2014, dia em que meu pai, Elaudio Weise, sofreu um acidente. Ele tem 60 anos, é agricultor e mora no interior do Rio Grande do Sul, numa cidadezinha chamada Agudo. Um belo dia, em meio à lida diária, quebrou a perna enquanto cortava árvores de eucalipto em sua propriedade. Logo após o acidente, segui para o hospital de Santa Maria (RS), onde foi internado. Ele fraturou o fêmur e precisou fazer uma operação para colocar alguns parafusos: primeiro foi inserido um fixador externo para não ter atrito do osso quebrado com o outro, até que fosse feita a cirurgia definitiva para a colocação da haste. Minha relação com meu pai sempre foi tranquila. Homem batalhador, era uma espécie de herói para mim. Quando cheguei ao hospital, vê-lo deitado, sofrendo, foi extremamente duro. Aquele senhor que tanto trabalhou pesado para o sustento das duas filhas, uma pessoa sempre forte, pronta para as atividades no campo, estava em uma cama, sem forças e com lágrimas nos olhos – e eu aliviada por ele estar vivo. Como eu tenho um trabalho flexível (sou jornalista freelancer), me prontifiquei a ser a acompanhante dele – contei com a ajuda esporádica de minha irmã e cunhado. Minha mãe precisou ficar em casa cuidando dos serviços gerais do sítio.
Nos primeiros dias, dormi em um colchonete que não era nem sofá nem cadeira, mas ainda assim confortável. Como ele estava dividindo o quarto, tive, nos dias seguintes, que revezar o sofá com o acompanhante do outro paciente. Isso fez com que eu dormisse sentada algumas vezes. As primeiras noites foram bem desconfortáveis, principalmente pelo fato de eu ter apenas uma cadeira para acomodar meu corpo cansado: eu olhava para o relógio esperando que o tempo passasse mais rápido, meu corpo estava dolorido e meu pai me chamava a todo instante. Eu só pensava na minha cama e nas noites tranquilas antes de tudo aquilo começar. Meu pai não tinha forças sequer para sair da cama e por isso precisava da ajuda de duas pessoas para se movimentar, algo necessário. Os passos eram lentos em direção ao banheiro. Era possível ver traços da cirurgia, o sangue que escorria e a força que custou a aparecer. Durante o tempo de internação dele, ajudei com todo tipo de tarefa: dei banho, auxiliei nas refeições, controlei os horários dos remédios, auxiliei a troca do soro, alcancei a água e, por inúmeras vezes, clamei pela ajuda dos enfermeiros. Atividades simples como escovar os dentes, se levantar, cortar a carne que vinha para o almoço só eram possíveis de serem feitas comigo por perto. Os primeiros banhos, por exemplo, foram complicados, demorados e com dor. Assim como foram longas as primeiras noites. O sono era intenso, mas eu não conseguia, de fato, dormir. E, a cada reclamação dele, eu acordava atenta – eu me condoía pela dor que sentia. E mesmo durante o sono, entre um cochilo e outro eu me deparava alcançando um remédio ou o papagaio usado para o xixi, chamando ajuda e pedindo para meu pai ter calma. Nesse período, precisei aprender a lidar com o cansaço e a cultivar a paciência. Meu pai, algumas vezes, foi impaciente e chato. Sim, ele não foi aquele doente querido, embora eu compreenda que em processos de dor é difícil fi car tranquilo. Também não imaginei que sentiria tanta solidão e tristeza. No hospital, o silêncio, em algumas noites, era profundo. Em dias de ventos, as portas batiam. E dava, claramente, para ouvir diversos pacientes chamando por ajuda, assim como meu pai. Era possível sentir a dor pairando no ar. Lembro de uma noite de sábado em que acessei uma rede social e vi fotos alegres. Famílias reunidas, comemorando, e eu estava ali sozinha. Nesse dia, chorei. Parece que apenas em momentos de dor e tristeza damos valor para os domingos recheados de sorrisos, casa cheia e almoço gostoso. A cirurgia para colocação da haste na perna foi feita uma semana após o acidente. E nessa noite, em especial, ele sentiu muita dor e quase me sufocou com tanta falta de paciência. Tive que dizer: “Pai você não é a única pessoa com dor aqui”. Alguns dias após a operação, ele foi para casa. Toda a família fi cou feliz, mas a alegria durou pouco. Dias após a alta, ele começou a ter fortes dores nas pernas. O diagnóstico: trombose. Foi necessária uma nova internação, que durou mais duas semanas. E lá fui eu junto. Meu pai permaneceu com as pernas para cima. Foi então que começou a ter problemas nos pulmões. Parecia que estava piorando a cada dia. As pernas doíam e ele mal conseguia ir ao banheiro sem ajuda. Aos poucos, ele foi se recuperando e recebeu a tão desejada alta defi nitiva. Fiquei aliviada e feliz por ele e por mim. Não consigo imaginar a dor pela qual passou, mas devo admitir que me senti sufocada muitas vezes e sem saber como lidar com as lamentações dele. Meu pai exigia muito e cobrava também. Foi sempre bastante aberto em aceitar ajuda, mas também queria que tudo fosse do jeito dele e de acordo com sua vontade. Por outro lado, a fé e a força de vontade que ele mantinha para melhorar, traziam força e esperança para nós dois. Foi, no final das contas, uma experiência com altos e baixos, em que nós dois compartilhamos o nosso melhor e o nosso pior. Nos afastou em alguns momentos e nos aproximou profundamente em outros.
Ao todo, meu pai ficou quase um mês internado. Foi um período intenso e cansativo e do qual levo bons ensinamentos: ninguém está preparado para morrer, ficar doente ou cuidar de alguém. Eu não espero que meu pai reconheça o que eu fiz por ele. Isso não é uma obrigação. Confesso que a entrega aqui foi minha. O que eu pude fazer, eu fiz. Lembro que meu trabalho como jornalista freelancer estava começando a decolar. E, bem nesse momento, acabei entregando vários textos atrasados e recusei outros tantos porque era muito difícil me concentrar e escrever no hospital – meu pai exigia muito pela minha atenção e o clima não era favorável para os pensamentos se tornarem letras e depois texto. Nesse mesmo período também estava participando de uma seleção para o mestrado, mas não fui aprovada. Faltou estudo e leitura. Se o culpo? Claro que não. Volto a dizer: a escolha foi minha. E não me arrependo dela. Cuidar de outra pessoa é muito cansativo. Faz brotar um monte de sentimentos, nem sempre louváveis. Mas, no final das contas, o saldo é positivo. Percebi a força interna que tenho para lidar com situações de sofrimento e me senti muito bem por cuidar de alguém que sempre cuidou de mim – ver uma pessoa que você ama melhorando com sua ajuda é algo mágico. Aprendi demais sobre paciência, compaixão, a importância de me colocar no lugar do outro e que é o amor que nos une e nos faz seguir em frente. Encerro com uma frase que gosto do protestante Martinho Lutero: “Deve-se doar com a alma livre, simples, apenas por amor, espontaneamente”.
- ANGÉLICA WEISE é jornalista, pratica ioga e volta e meia liga para o pai, só para saber se está tudo bem.