quarta-feira, 18 de março de 2015

MORFINA E CÂNCER - Pobres sofrem por falta de acesso à morfina.

Alívio da dor intensa só com Morfina
Dor fraca qualquer analgésico espanta. Dores de intensidade intermediária, daquelas que melhoram com antiinflamatórios, impõem limitações, tiram a alegria, mas permitem que a vida siga em frente. Não é dessas dores que trato neste artigo, vou falar da dor forte, a mais trágica sensação transmitida pelo corpo.
As dores fortes podem vir em cólica ou como pontadas que não passam. A cólica ataca no abdômen, retorce, afrouxa e aperta de novo uma porção de vezes. Quando é muito forte, dá vontade de rolar no chão; a pessoa sente que vai se rasgar por dentro. Quem já teve cólica renal ou de vesícula sabe o que é isso.
A pontada que não passa é mais insidiosa: começa, aperta até atingir um platô e fica. Parece que enterraram uma faca na carne da gente. Depois de algumas horas com ela, a vida se transforma num vale de lágrimas. Às vezes, é pior do que a morte.
Como cancerologista, convivo com essas dores intensas, persistentes, há 30 anos. Nesse tempo, aprendi que elas só desaparecem com morfina.
Os demais analgésicos reduzem a intensidade, mas dificilmente acabam com dores muito fortes. A pessoa fica aliviada com eles, é lógico: doía 100, tomou o remédio, agora dói 30! Melhorou, mas a dor não foi embora; ficou lá, no fundo, como um alicate frouxo, pronto para apertar assim que diminuir o efeito analgésico. A morfina é a única droga que reduz esse tipo de dor a zero.
Tanta tecnologia na medicina e ainda não inventaram analgésico melhor. A morfina foi obtida a partir do ópio há 200 anos, na Alemanha. O ópio é retirado do leite da papoula e tem sido usado como remédio há mais de 2.000 anos. Os médicos do Império Romano já o receitavam. Na Idade Média, fez parte de elixires e tônicos usados como panacéia para muitas doenças. Alguns deles, como o elixir paregórico, resistiram até recentemente nas farmácias brasileiras.
Hoje, o tratamento com morfina geralmente se restringe a dois grupos de doentes: aqueles que precisam da droga por um período curto, no hospital, para enfrentar dor de cirurgia, osso quebrado ou ferimento; e os que fazem uso crônico dela, como as pessoas queimadas e os portadores de câncer.
No hospital, é fácil receitar morfina. Para o doente que está em casa, entretanto, a obtenção da droga é um drama para a família. Ou para ele mesmo se não tiver quem o ajude.
O médico é obrigado a fazer a receita num formulário amarelo, numerado. Para obtê-lo precisa se cadastrar numa repartição pública no centro da cidade, pessoalmente, de preferência. De posse da prescrição, começa a via sacra dos familiares atrás de uma farmácia que venda morfina. Mesmo nos grandes centros urbanos é muito difícil encontrá-la; nos bairros pobres e nas pequenas cidades, então, impossível.
Isso acontece porque as farmácias que vendem morfina obedecem a uma legislação que impõe fiscalização rígida. De fato, esses estabelecimentos são os mais fiscalizados. Se você fosse dono de farmácia, ia preferir vender morfina, que custa barato, e trazer o fiscal para dentro da sua casa ou os medicamentos que a indústria põe à venda a preços pirotécnicos sem qualquer fiscalização?
As dificuldades nessa área são de tal ordem, que o Sindicato dos Médicos do Rio Grande do Sul entrou com uma ação na Justiça contra a Vigilância Sanitária por cercear o exercício da medicina.
Embora seja a pior, a burocracia não é a única barreira para impedir que a morfina chegue às mãos dos que precisam dela. Tradicionalmente, a ênfase do ensino nas faculdades é colocada na cura das doenças, e não no alívio da dor. Como consequência, a maioria dos médicos conhece mal a farmacologia da morfina e se esquiva de prescrevê-la.
A terceira barreira é criada pelos próprios familiares do doente com dor crônica, que hesitam em aceitar a prescrição por achar que morfina só é indicada quando o caso está perdido.