Alívio da dor intensa só com Morfina
Dor fraca qualquer analgésico espanta. Dores de intensidade
intermediária, daquelas que melhoram com antiinflamatórios, impõem
limitações, tiram a alegria, mas permitem que a vida siga em frente. Não
é dessas dores que trato neste artigo, vou falar da dor forte, a mais
trágica sensação transmitida pelo corpo.
As dores fortes podem vir
em cólica ou como pontadas que não passam. A cólica ataca no abdômen,
retorce, afrouxa e aperta de novo uma porção de vezes. Quando é muito
forte, dá vontade de rolar no chão; a pessoa sente que vai se rasgar por
dentro. Quem já teve cólica renal ou de vesícula sabe o que é isso.
A
pontada que não passa é mais insidiosa: começa, aperta até atingir um
platô e fica. Parece que enterraram uma faca na carne da gente. Depois
de algumas horas com ela, a vida se transforma num vale de lágrimas. Às
vezes, é pior do que a morte.
Como cancerologista, convivo com
essas dores intensas, persistentes, há 30 anos. Nesse tempo, aprendi que
elas só desaparecem com morfina.
Os demais analgésicos reduzem a
intensidade, mas dificilmente acabam com dores muito fortes. A pessoa
fica aliviada com eles, é lógico: doía 100, tomou o remédio, agora dói
30! Melhorou, mas a dor não foi embora; ficou lá, no fundo, como um
alicate frouxo, pronto para apertar assim que diminuir o efeito
analgésico. A morfina é a única droga que reduz esse tipo de dor a zero.
Tanta
tecnologia na medicina e ainda não inventaram analgésico melhor. A
morfina foi obtida a partir do ópio há 200 anos, na Alemanha. O ópio é
retirado do leite da papoula e tem sido usado como remédio há mais de
2.000 anos. Os médicos do Império Romano já o receitavam. Na Idade
Média, fez parte de elixires e tônicos usados como panacéia para muitas
doenças. Alguns deles, como o elixir paregórico, resistiram até
recentemente nas farmácias brasileiras.
Hoje, o tratamento com
morfina geralmente se restringe a dois grupos de doentes: aqueles que
precisam da droga por um período curto, no hospital, para enfrentar dor
de cirurgia, osso quebrado ou ferimento; e os que fazem uso crônico
dela, como as pessoas queimadas e os portadores de câncer.
No
hospital, é fácil receitar morfina. Para o doente que está em casa,
entretanto, a obtenção da droga é um drama para a família. Ou para ele
mesmo se não tiver quem o ajude.
O médico é obrigado a fazer a
receita num formulário amarelo, numerado. Para obtê-lo precisa se
cadastrar numa repartição pública no centro da cidade, pessoalmente, de
preferência. De posse da prescrição, começa a via sacra dos familiares
atrás de uma farmácia que venda morfina. Mesmo nos grandes centros
urbanos é muito difícil encontrá-la; nos bairros pobres e nas pequenas
cidades, então, impossível.
Isso acontece porque as farmácias que
vendem morfina obedecem a uma legislação que impõe fiscalização rígida.
De fato, esses estabelecimentos são os mais fiscalizados. Se você fosse
dono de farmácia, ia preferir vender morfina, que custa barato, e trazer
o fiscal para dentro da sua casa ou os medicamentos que a indústria põe
à venda a preços pirotécnicos sem qualquer fiscalização?
As
dificuldades nessa área são de tal ordem, que o Sindicato dos Médicos do
Rio Grande do Sul entrou com uma ação na Justiça contra a Vigilância
Sanitária por cercear o exercício da medicina.
Embora seja a pior,
a burocracia não é a única barreira para impedir que a morfina chegue
às mãos dos que precisam dela. Tradicionalmente, a ênfase do ensino nas
faculdades é colocada na cura das doenças, e não no alívio da dor. Como
consequência, a maioria dos médicos conhece mal a farmacologia da
morfina e se esquiva de prescrevê-la.
A terceira barreira é criada
pelos próprios familiares do doente com dor crônica, que hesitam em
aceitar a prescrição por achar que morfina só é indicada quando o caso
está perdido.