quarta-feira, 28 de outubro de 2015

CIBERCULTURA

  • DILÚVIOS
Pensar a cibercultura: esta é a proposta deste livro. Em geral me consideram um otimista. Estão certos. Meu otimismo, contudo, não promete que a Internet resolverá, em um passe de mágica, todos os problemas culturais e sociais do planeta. Consiste apenas em reconhecer dois fatos. Em primeiro lugar, que o crescimento do ciberespaço resulta de um movimento internacional de jovens ávidos para experimentar, coletivamente, formas de comunicação diferentes daquelas que as mídias clássicas nos propõem. Em segundo lugar, que estamos vivendo a abertura de um novo espaço de comunicação, e cabe apenas a nós explorar as potencialidades mais positivas deste espaço nos planos econômico, político, cultural e humano.
Aqueles que denunciam a cibercultura hoje têm uma estranha semelhança com aqueles que desprezavam o rock nos anos 50 ou 60. O rock era angloamericano, e tornou-se uma indústria. Isso não o impediu, contudo, de ser o portavoz das aspirações de uma enorme parcela da juventude mundial. Também não impediu que muitos de nós nos divertíssemos ouvindo ou tocando juntos essa música. A música pop dos anos 70 deu uma consciência a uma ou duas gerações e contribuiu para o fim da Guerra do Vietnã. É bem verdade que nem o rock nem a música pop resolveram o problema da miséria ou da fome no mundo. Mas isso seria razão para "ser contra".
Durante uma dessas mesas redondas que têm se multiplicado sobre os "impactos" das novas redes de comunicação, tive a oportunidade de ouvir um cineasta, que se tornou um funcionário europeu, denunciar a "barbárie" encarnada pelos videogames, os mundos virtuais e os fóruns eletrônicos. Respondi-lhe que aquele era um discurso muito estranho vindo de um representante da sétima arte. Pois, ao nascer, o cinema foi desprezado como um meio de embotamento mecânico das massas por quase todos os intelectuais bem-pensantes, assim como pelos portavozes oficiais da cultura. Hoje, no entanto, o cinema é reconhecido como uma arte completa, investido de todas as legitimidades culturais possíveis. Parece contudo que o passado não é capaz de nos iluminar.
O mesmo fenômeno pelo qual o cinema passou se reproduz hoje com as práticas sociais e artísticas baseadas nas técnicas contemporâneas. Estas são denunciadas como "estrangeiras" (americanas), inumanas, embotantes, desrealizantes etc.
Não quero de forma alguma dar a impressão de que tudo o que é feito com as redes digitais seja "bom". Isso seria tão absurdo quanto supor que todos os filmes sejam excelentes. Peço apenas que permaneçamos abertos, benevolentes, receptivos em relação à novidade.
Que tentemos compreendê-la, pois a verdadeira questão não é ser contra ou a favor, mas sim reconhecer as mudanças qualitativas na ecologia dos signos, o ambiente inédito que resulta da extensão das novas redes de comunicação para a vida social e cultural. Apenas dessa forma seremos capazes de desenvolver estas novas tecnologias dentro de uma perspectiva humanista.
Mas falar de humanismo não é justamente uma característica dos sonhadores. A questão parece estar definida, os jornais e a televisão já decidiram: o ciberespaço entrou na era comercial — "Os vendedores invadem a Internet", segundo a manchete do Le Monde Diplomatique.
Tornou-se uma questão de dinheiro envolvendo os pesos pesados. O tempo dos ativistas e dos utopistas já terminou. Se você tentar explicar o desenvolvimento de novas formas de comunicação transversais, interativas e cooperativas, ouvirá como resposta um discurso sobre os ganhos fabulosos de Bil Gates, presidente da Microsoft. Os serviços online serão pagos, restritos aos mais ricos. O crescimento do ciberespaço servirá apenas para aumentar ainda mais o abismo entre os bem-nascidos e os excluídos, entre os países do Norte e as regiões pobres nas quais a maioria dos habitantes nem mesmo tem telefone.
Qualquer esforço para apreciar a cibercultura coloca você automaticamente no lado da IBM, do capitalismo financeiro internacional, do governo americano, tornando-o um apóstolo do neoliberalismo selvagem e duro com os pobres, um arauto da globalização escondido sob uma máscara de humanismo!
Devo portanto enunciar aqui alguns argumentos sensatos. O fato de que o cinema ou a música também sejam indústrias e parte de um comércio não nos impede de apreciá-los, nem de falar deles em uma perspectiva cultural ou estética. O telefone gerou e continua a gerar verdadeiras fortunas para as companhias de telecomunicação. Isso não altera o fato de que as redes de telefonia permitem uma comunicação planetária e interativa. Ainda que apenas um quarto da humanidade tenha acesso ao telefone, isso não constitui um argumento "contra" ele. Por isso não vejo por que a exploração econômica da Internet ou o fato de que atualmente nem todos têm acesso a ela constituiriam, por si mesmos, uma condenação da cibercultura ou nos impediriam de pensá-la de qualquer forma que não a crítica. É verdade que há cada vez mais serviços pagos. E tudo indica que essa tendência vai continuar e até crescer nos próximos anos. Ainda assim, também é preciso notar que os serviços gratuitos proliferam ainda mais rapidamente. Estes serviços gratuitos vêm das universidades, dos órgãos públicos, das associações sem fins lucrativos, dos indivíduos, de grupos de interesse diversos e das próprias empresas. Não há sentido em opor o comércio de um lado e a dinâmica libertária e comunitária que comandou o crescimento da Internet de outro. Os dois são complementares, para desgosto dos maniqueístas.
A questão da exclusão é, evidentemente, crucial, e será abordada no último capítulo deste livro. Gostaria apenas de observar, nesta introdução, que essa questão não deve nos impedir de contemplar as implicações culturais da cibercultura em todas as suas dimensões. Aliás, não são os pobres que se opõem à Internet — são aqueles cujas posições de poder, os privilégios (sobretudo os privilégios culturais) e os monopólios encontram-se ameaçados pela emergência dessa nova configuração de comunicação.
Durante uma entrevista nos anos 50, Albert Einstein declarou que três grandes bombas haviam explodido durante o século XX: a bomba demográfica, a bomba atômica e a bomba das telecomunicações. Aquilo que Einstein chamou de bomba das telecomunicações foi chamado, por meu amigo Roy Ascott (um dos pioneiros e principais teóricos da arte em rede), de "segundo dilúvio", o das informações. As telecomunicações geram esse novo dilúvio por conta da natureza exponencial, explosiva e caótica de seu crescimento. A quantidade bruta de dados disponíveis se multiplica e se acelera. A densidade dos links entre as informações aumenta vertiginosamente nos bancos de dados, nos hipertextos e nas redes. Os contatos transversais entre os indivíduos proliferam de forma anárquica. É o transbordamento caótico das informações, a inundação de dados, as águas tumultuosas e os turbilhões da comunicação, a cacofonia e o psitacismo ensurdecedor das mídias, a guerra das imagens, as propagandas e as contrapropagandas, a confusão dos espíritos.
A bomba demográfica também representa uma espécie de dilúvio, um crescimento demográfico espantoso. Havia pouco mais de um bilhão e meio de homens na Terra em 1900, mas serão mais de seis bilhões no ano 2000. Os homens inundam a Terra. Esse crescimento global tão acelerado não tem nenhum precedente histórico.
Frente à irresistível inundação humana, há duas soluções opostas.
Uma delas é a guerra, o extermínio do dilúvio atômico, não importando qual seja sua forma, com o desprezo que isto implica em relação às pessoas. Nesse caso, a vida humana perde seu valor. O humano é reduzido ao nível das bestas ou das formigas, esfomeado, aterrorizado, explorado, deportado, massacrado.
A outra é a exaltação do indivíduo, o humano considerado como o maior valor, recurso maravilhoso e sem preço. Para valorizar o valor, faremos um grande esforço a fim de tecer incansavelmente relações entre as idades, os sexos, as nações e as culturas, apesar das dificuldades e dos conflitos. A segunda solução, simbolizada pelas telecomunicações, implica o reconhecimento do outro, a aceitação e ajuda mútua, a cooperação, a associação, a negociação, para além das diferenças de pontos de vista e de interesses. As telecomunicações são de fato responsáveis por estender de uma ponta à outra do mundo as possibilidades de contato amigável, de transações contratuais, de transmissões de saber, de trocas de conhecimentos, de descoberta pacífica das diferenças.