- EU COSTUMAVA PENSAR em como seria ter câncer: descobrir que temos uma coisa feia crescendo e nos consumindo, dentro ou em torno dos ossos ou órgãos. Em como seria seguir pela vida tranquilamente sem saber que nossas entranhas estão nos traindo.
Mas agora sei: foi como se eu estivesse esperando um bebê. Os tumores que cresciam calados dentro de mim se expandiram de repente num fim de semana, projetando minha barriga.
Foi tudo muito estranho; nos meses anteriores eu me sentira nauseada, com as roupas apertadas. Estava exausta, mas a médica atribuiu isso à carga de trabalho.
Então, num certo sábado de junho, fui atingida por uma dor lancinante.
Quando andava, estranhamente tinha a mesma sensação de quando estava grávida: órgãos apertados, espremidos uns contra os outros. Quando não me concentrava, achava que sentiria um pontapé e as mãos se esgueiravam até a barriga. Então eu me lembrava.
Não era um bebê. Era uma massa do tamanho de uma bola de basquete entre o umbigo e a coluna. Em pouco tempo eu quase me sentia oscilar com ela.
Carregava comigo um bebê assassino e não tinha certeza se queria ser operada ou exorcizada.
A suspeita de diagnóstico era ruim: câncer avançado de ovário. “Tenho de ser franco com você, Julia”, disse o cirurgião quando perguntei se poderia ser benigno. “Todos os sintomas são de um tumor muito agressivo.”
Passei duas semanas aguardando a cirurgia, sem saber se viveria até o fim do ano.
O mundo se estreita numa fenda quando enfrentamos um diagnóstico desses: de repente, pouquíssima coisa importa. Contei à família e a alguns amigos íntimos e me tranquei.
Acordava de madrugada tomada de terror e pensava na morte antes de me levantar para preparar meu filho e minha filha para a escola. Estava passando manteiga nos sanduíches do lanche deles quando o cirurgião ligou para me dizer que parecia haver metástase no fígado. Mordi o lábio, cortei os sanduíches e segurei com força a mão de meus filhos enquanto andávamos até a escola.
Nos dias anteriores à operação, desliguei o computador e o celular. Rezei tanto que cheguei a ficar calma. Eu me sentia como uma flor que se fechava em si mesma, protegendo-se, preparando-se para a noite.
Todo diagnóstico de câncer é uma espécie de impotência. Correr mil quilômetros, gabaritar um bilhão de provas: nada pode revertê-lo nem apagá-lo. Só havia a cirurgia.
A operação durou cinco horas. A massa foi totalmente removida, mas houve complicações inesperadas. Fiquei oito dias na UTI, num emaranhado de fios, máquinas bipando, com drenos nos pulmões e no fígado. Estava tão drogada que tinha alucinações: um músico de reggae sentou-se calado em minha cama, meu irmão mais velho tinha três cabeças e chovia periodicamente em torno do leito.
Fiquei apegadíssima às enfermeiras, agradecida por sua bondade, me perguntando se haveria alguma profissão mais importante.
Também me apeguei aos cirurgiões, que ficaram contentes ao descobrir que os tumores, um em cada ovário, não eram agressivos; eu tivera uma forma rara de câncer, que pode reaparecer, mas cuja taxa de sobrevivência é muito mais alta.
Aos poucos, estou ficando mais forte. Voltei a andar ereta e acordo sem dores lancinantes. Estou me preparando para retomar o trabalho. Meu prognóstico é bom, mas terei de conviver com o medo do retorno.
Esta semana, os exames de sangue revelaram ausência de câncer. Mas a cicatriz corre por todo o meu tronco; sinto-me alterada para sempre. Será estranho voltar à vida normal.
Quando saí do hospital, de repente todo mundo parecia cheio de preocupações bobas. Eu via as queixas nas mídias sociais – pessoas gripadas, sobrecarregadas de trabalho – e queria gritar: MAS VOCÊS ESTÃO VIVOS!!! Cada dia é uma glória.
Ainda estou lutando para entender o significado de tudo isso. Mas, nesse curto período, três verdades antiquíssimas ficaram mais claras para mim.
Em primeiro lugar, a serenidade e a fé podem nos dar força extraordinária.
A comoção nos esgota. O papo do guerreiro “corajoso” que costuma cercar o câncer me soa falso. Eu não queria guerra, tumulto nem batalha.
Em vez disso, só rezei a Deus. E acho que o que encontrei é bem parecido com o que os filósofos gregos chamavam de ataraxia: uma calma suspensa na qual encontramos força surpreendente.
Em segundo lugar, a gente acaba tentando consolar as pessoas em pânico. Mas os que vêm enxugar nossa testa quando parecemos um fantasma tentam nos fazer rir, nos distraem com histórias bobas, cozinham para nós – e até viajam 20 horas só para trazer um abraço –, são companheiros do mais alto nível. Família é tudo.
Em terceiro lugar, não deveríamos ter de fugir para o bosque como Henry David Thoreau para “viver deliberadamente”. Seria impossível e cansativo viver cada dia como se fosse o último. Mas redigir um testamento com crianças pequenas como beneficiários tem algo que faz o mundo parar.
Alguns dias atrás, minha médica me perguntou o que fiz para ficar tão calma antes da cirurgia. Eu lhe disse: rezei, deixei o drama e a negatividade de fora e puxei minha tribo e minha família – pessoas pragmáticas de grande coração – para mais perto. Tentei viver deliberadamente.
“Acho”, comentou ela, “que você deveria fazer isso pelo resto da vida.”
Julia Baird voltou a nadar e a trabalhar em seu programa de TV.
Sua biografia sobre a rainha Vitória acaba de ser publicada.
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