domingo, 3 de janeiro de 2016

Vida - Sobrevivendo no limite ...

  • Botânica Cotidiana
O celular repentinamente acabou a bateria e eu me peguei no ônibus num belo dia de sol, nem tão quente e nem tão frio, rumando ao trabalho. O mundo simplesmente acontece fora da tela de 10 cm. De uma hora para outra, passei a observar as pessoas, que lá estavam como eu. Homens e mulheres de diferentes trajes, cores, belezas e particularidades. Tinham duas mulheres bem bonitas, uma de traje executiva, outra que poderia ser uma estudante da USP. Um senhor lia um livro, outro mirava por entre as janelas. O restante praticamente olhava as telas, como eu fazia há dois minutos, indo e vindo entre uma foto, uma mensagem e um status de uma rede social para outra. Até que perdeu a graça observar as expressões hipnotizadas de frente aos celulares, a mesma que eu exibia cinco minutos atrás.
 

Então, o ônibus subiu o viaduto e revelou a vista para o mar de árvores a se perder de vista, espalhadas pelo Parque Ibirapuera. Em tal volume e quantidade que descansavam o olhar perdido por entre a janela do ônibus balançando. Havia também inúmeras delas entre as avenidas, abaixo dos viadutos e até por entre as vias, como que achando qualquer meio para florescer. Sim, elas saíam por entre o asfalto e o concreto, em raízes que teimavam em achar terra e alimento. Um verdadeiro ato de resistência.
 

De súbito, diante de tanta diversidade e estilos, dei-me conta que “árvore”, assim dita de pronto, é no mínimo uma simplificação absoluta, uma pobreza intelectual. Árvore é o substantivo simplificador para quem não enxerga a singularidade em cada uma delas. Há tantas e tantas que cada uma tem lá sua família, seu gênero, sua identidade. Há árvores de todas as alturas, folhagens, cores e frutos. Umas têm as folhas amarelas, outras exibem diferentes tonalidades de verde, folhas de diferentes texturas. Uns de troncos retorcidos, outros firmes, e envergaduras de galhos de todos os tipos. Algumas brotam flores e enquanto umas estão apinhadas de frutos, possivelmente comestíveis, que por ignorância não consigo reconhecer. E aí, reconhecendo tantos detalhes, dei-me conta da minha brutalidade: não sei nomear as árvores. Demoro a reconhecer até as mais triviais: amoreiras, araçás, araucárias, cambuís, cedros, eucaliptos, figueiras, flamboyants, ipês, jatobás, jequitibás, nogueiras, paineiras, pinheiros e nem sequer cheguei nas frutíferas! Água na boca só de pensar.
 

Comecei a nomeá-las no engarrafamento até finalizar o viaduto e alcançar a Avenida Ibirapuera. Já que não sei os nomes científicos, poderia batizá-las com os nomes que me convinham. Uma delas, sem dúvida, era João. Tinha estas folhas frondosas e altura de duas outras ao lado, a Maria e a Mayra. Aquela que saía entre o concreto só poderia ser Pedro, afinal tinha a raiz endurecida com as dificuldades da vida severina. Aquela outra que seria igual a tantas se não fosse um detalhe ou outro fica batizada de José. Já a Jennifer é aquela frondosa e amarela.  Aquela que parece que usa um chapéu, com as frondas altivas lá em cima, deve se chamar Francisco. Nomes e nomes que na falta de um, talvez seja sábio começar até a dar sobrenomes, tais como os extensos nomes científicos que nos deparamos: Cedrus Spp, Tecoma serratifolia, Carya Illinoisnensis, Cariniana legalis, ufa! São tantos detalhes que exercito a botânica trivial do olhar.
 

Enfim, o trabalho pouco a pouco se aproxima, e lá ficarei entre um projeto e outro pensando nestes diálogos perdidos e em outros tantos forçados do dia-a-dia. Afinal, na falta de gente ao meu redor, talvez a solução seja aprender a falar com as árvores. Uma conversa sem palavras, que silencia e em que o principal assunto é o horizonte.
  • Bogado Lins  - Escritor, roteirista e articulador do Literatura Cotidiana