- Ética É Mais Importante Que a Religião
USA SANDÁLIAS COMUNS, e o sorriso que lhe ilumina o rosto é prazenteiro. Tenzin Gyatso, o 14.º Dalai Lama, e eu já nos encontramos mais de 30 vezes nos últimos 33 anos, e raramente entrevistei alguém tão empático. Ninguém ri mais do que ele. Segundo inquéritos, é a pessoa do mundo de quem mais gente gosta. A notícia não surpreende. «Não conheço nenhum inimigo», disse-me há mais de 20 anos. «Mas há pessoas que não conheço ainda.»
Apesar de a ocupação chinesa o ter forçado a viver fora do Tibete desde 1959, não sente ódio pela China nem pelos seus líderes. Pelo contrário. «Claro que rezo pelos líderes comunistas em Pequim», afirma. Apesar da sua idade, o Dalai Lama acredita que ainda viverá o bastante para ver a resolução do conflito que opõe a China ao seu Tibete natal.
Nos últimos anos, o Dalai Lama tem apelado cada vez mais insistentemente a uma ética que transcende a religião. Hoje, aos 80 anos, proclama uma visão que é seguramente original para um líder religioso: «A ética é mais importante do que a religião», afirma. «Não chegamos a este mundo como membros desta ou daquela religião. Mas a ética é inata.»
Uma das suas principais certezas é a de que todos os seres humanos são iguais no que respeita à busca pela felicidade e ao desejo de evitar o sofrimento.
Franz Alt: Depois do ataque terrorista em Paris, disse: «Há dias em que creio que seria melhor não existirem religiões!» O que pretendia dizer com isto?
Dalai Lama: É claro que o conhecimento e a prática da religião tem sido muito útil, mas atualmente já não basta, como mostram com cada vez maior clareza vários exemplos em todo o mundo. Isto é verdade para todas as religiões, incluindo o cristianismo e o budismo. Já se travaram guerras em nome da religião, inclusivamente «guerras santas». As religiões foram e continuam a ser intolerantes. É por isso que digo que no século XXI precisamos de uma nova ética que transcenda as religiões. Mais importante do que a religião é a nossa espiritualidade humana elementar. É a predisposição para o amor, para a bondade e para o afeto que todos possuímos, independentemente da religião que professamos. No meu ponto de vista, as pessoas podem viver sem religião, mas não conseguem viver sem valores, sem ética.
O que o leva a pensar que aquilo de que precisamos é de mais espiritualidade do que a que as religiões ditas tradicionais têm para oferecer?
Vivo há 56 anos no exílio, na Índia. É uma sociedade secular que vive segundo uma ética secular. Mahatma Gandhi era profundamente religioso, mas também possuía um espírito secular. Tinha uma enorme admiração por Jesus e pelo pacifismo do Sermão da Montanha. É ele o meu modelo, porque personificou a tolerância religiosa. Esta tolerância está profundamente enraizada na Índia. Com muito poucas exceções encontramos ali não apenas hindus, muçulmanos, cristãos e siques a viver em paz, mas também jainistas, budistas, judeus, agnósticos e ateus.
Sei que têm existido casos reiterados de violência pontual. Mas é errado fazer generalizações. No seu todo, a sociedade indiana é pacífica e harmoniosa. Todas as confissões religiosas defendem o princípio indiano antigo da não violência, ahimsa, com o qual Gandhi teve tanto êxito político. É o alicerce da coexistência pacífica. Essa é uma ética prática secular que transcende todas as religiões. O mundo de hoje faria bem em imitá-lo
Entre os seis mil milhões de «crentes» no mundo, são muitos os que não levam a sério a sua própria religião.
Infelizmente, entre esses seis mil milhões estão muitas pessoas corruptas, que apenas perseguem os seus próprios interesses. Mas só existirá mais paz externa na Terra quando existir mais paz interna. E isto é verdade para todos os conflitos de hoje – na Ucrânia, no Médio Oriente, no Afeganistão, na Nigéria. Em quase toda a parte, o fundamentalismo religioso é uma das causas da guerra. Sabemos muito bem que arriscar uma guerra nuclear seria comparável a um suicídio coletivo. Só isto mostra o quanto estamos dependentes uns dos outros.
A mais moderna investigação neurobiológica recente sugere veementemente que os comportamentos altruístas são mais gratificantes que os egoístas. As pessoas não têm de ser egoístas: podem com a mesma facilidade ser altruístas e orientar as suas atividades para o bem-estar dos outros. O altruísmo faz-nos mais felizes!
A felicidade não é apenas uma coincidência: é uma capacidade que todo e qualquer indivíduo tem à sua disposição. Toda a gente pode ser ou tornar-se feliz. A investigação moderna diz-nos quais os fatores que influenciam a felicidade. Passo a passo, podemos transformar os fatores que militam contra a felicidade. Isto é verdade para a totalidade da sociedade. O objetivo de uma ética secular é libertar-nos do sofrimento imediato e a longo prazo e desenvolver a capacidade de apoiar os outros na busca da felicidade. Um dos aspectos da compaixão é a vontade espontânea de agir em prol do bem-estar dos outros.
Atribui uma grande importância à moderna investigação sobre o cérebro. Porquê?
O nosso cérebro é um órgão de aprendizagem. A neuropsicologia diz-nos que podemos treinar o cérebro como treinamos os músculos. Desta forma, podemos ser destinatários conscientes do bom e do bem e, com isso, influenciar positivamente o nosso cérebro e ultrapassar o que é negativo. Com a ajuda da mente e do espírito, podemos mudar o nosso cérebro para melhor. Isto é um progresso revolucionário.
Graças a este progresso estamos agora mais seguros de que a ética, a compaixão e o comportamento social são coisas com as quais nascemos, enquanto a religião é algo que nos é incutido. A conclusão é que a ética é mais profunda e mais natural do que a religião.
Que perguntas devemos fazer-nos para desenvolver ainda mais a nossa capacidade de compaixão?
Temos uma mente aberta ou fechada? Estamos a considerar a situação como um todo, ou a ver apenas um aspecto? Estamos a pensar e a agir holisticamente? Olhamos genuinamente para as coisas com uma perspetiva de longo prazo, ou apenas de curto prazo? As nossas ações são verdadeiramente motivadas por uma compaixão sincera? A nossa compaixão limita-se à família e aos amigos, porque nos conseguimos identificar com eles?
Precisamos de refletir, refletir, refletir. E de investigar, investigar, investigar. A ética tem principalmente que ver com a nossa condição espiritual, e não com a adesão formal a uma comunidade religiosa. Temos de ultrapassar as restrições autoimpostas e aprender a compreender as perspectivas dos outros. No atual conflito da Ucrânia, isto significa que a Europa Oriental precisa da Europa Ocidental, e que a Europa Ocidental precisa da Europa Oriental. Por isso, falem uns com os outros! Percebam que vivemos numa época de globalização. O novo lema tem de ser: «Os vossos interesses são os nossos interesses.» O fundamentalismo é sempre prejudicial. As ideias de ontem não nos levam a lado nenhum. Especialmente para as crianças, os adultos de amanhã, a ética é mais importante do que a religião.
As mudanças climáticas são outra coisa que apenas poderemos enfrentar globalmente. Espero e rezo para que na próxima cimeira em Paris, daqui a uns meses, esta verdade inegável produza finalmente resultados concretos. Egoísmo, nacionalismo e violência são o caminho errado. A questão mais importante para um mundo melhor é: «Como é que podemos ajudar-nos uns aos outros?»
A cada dia fazemos desaparecer 150 espécies de plantas e animais, atiramos para o ar 150 milhões de toneladas de gases com efeito de estufa. O que é que uma ética secular pode fazer para parar isto?
Consciência, educação, respeito, tolerância, preocupação e não violência. No último século fizemos enormes progressos em termos materiais. Tudo considerado, foi uma coisa boa. Mas este progresso também levou ao mal atroz que estamos a fazer ao ambiente. No século XXI temos de aprender, cultivar e aplicar valores interiores a todos os níveis.
Independentemente de acreditarmos ou não numa religião, todos temos em nós esta fonte de ética primitiva, elementar, humana. Temos de cultivar esta fundação ética. Ajudar-nos-á a preservar o ambiente. Isto é religião prática e ética prática.
Há duas formas de olhar para a natureza humana. Uma delas diz que, por natureza, os seres humanos são violentos, implacáveis e agressivos. A outra forma de ver é que somos naturalmente sintonizados para a generosidade, harmonia e viver em paz. Esta segunda forma é a minha. Desse modo, não considero a ética uma coleção de mandamentos e proibições a que devamos aderir, mas um impulso natural interior, que nos inspira a procurar a felicidade e a satisfação para nós e para os outros. O desejo simples que me inspira é contribuir para o bem da humanidade e do mundo vivo.
A ética educacional, a partir de cerca dos 14 anos, é mais importante do que a religião. A educação muda tudo. As pessoas são capazes de aprender. Na Alemanha podemos ver isto pela queda do Muro de Berlim. Testemunhar aquilo foi para mim uma experiência inesquecível. Outro caso é o das políticas da União Europeia depois da Segunda Guerra Mundial. Hoje, antigos inimigos trabalham juntos para construir e partilhar uma Europa pacífica. Por esse facto, a União Europeia até recebeu o Prêmio Nobel da Paz. E muito bem!
O que pode cada um de nós fazer para tornar o mundo um lugar mais pacífico e melhor?
Se queremos fazer do mundo um lugar melhor, então também nós próprios temos de nos tornar melhores. Não há um caminho fácil. Primeiro que tudo temos de ver os nossos inimigos como seres humanos. No Sermão da Montanha, Jesus chama a isto «amar o teu inimigo». No nosso melhor interesse, devemos fazer tudo o que nos for possível para garantir que todos os seres vivos podem prosperar. Para isso, precisamos de ensinar o espírito e de educar o coração.
Depois de 1945, a União Europeia escolheu o caminho certo e garantiu a cooperação entre antigos inimigos. Assim, os inimigos tornaram-se amigos. Isto só foi possível porque milhões de pessoas conscientemente deixaram de trilhar aquele caminho.
O verdadeiro inimigo é o inimigo interior, não o exterior. As inimizades externas nunca duram, e a inimizade entre China e Tibete não é exceção. Se respeitarmos os nossos inimigos, um dia eles poderão tornar-se nossos amigos.
É por isto que a minha adesão à não violência é inabalável. Essa é uma forma inteligente de amarmos os nossos inimigos. A meditação intensa diz-nos que os inimigos podem tornar-se os nossos melhores amigos. Desta forma, podemos atingir maior serenidade, maior compaixão e maior perspicácia. Então teremos uma verdadeira hipótese de fazer do século XXI um século de paz, um século de diálogo e um século de humanidade responsável, preocupada e compassiva.
É nisto que tenho esperança, é para isto que rezo.