- Introdução - Por uma alimentação de verdade
Coma comida. Não em excesso. Principalmente vegetais. Esta é, mais ou menos, a resposta resumida à pergunta supostamente complicadíssima sobre o que os seres humanos devem comer para serem saudáveis ao máximo.
Odeio abrir o jogo logo aqui no início de um livro dedicado ao assunto, e fico tentado a complicar as coisas para poder ir esticando o tema por mais algumas centenas de páginas. Tentarei resistir, mas irei adiante e acrescentarei mais alguns detalhes para enriquecer as recomendações. Como, por exemplo, comer um pouco de carne não mata ninguém, embora talvez seja melhor encará-la como acompanhamento do que como prato principal.
E é melhor para você comer alimentos frescos e integrais do que industrializados. É isso o que quero dizer com a recomendação “coma comida”, o que não é tão simples quanto parece. Pois, enquanto antigamente só se podia comer comida, hoje há milhares de outras substâncias comestíveis com aparência de comida no supermercado. Esses novos produtos da ciência da alimentação vêm, muitas vezes, em embalagens cobertas de alegações quanto aos benefícios que trazem para a saúde, o que me leva a outro conselho um tanto incoerente: quem se preocupa com a saúde provavelmente deveria evitar produtos que fazem alegações quanto a benefícios para a saúde. Por quê? Porque uma alegação desse tipo num produto alimentício é forte indicação de que não se trata de fato de comida, e comida é o que você deseja comer.
Por aí você vê como as coisas podem se complicar depressa.
Iniciei essa busca pela identificação de algumas regras simples sobre alimentação depois de publicar O dilema do onívoro, em 2006. Questões de saúde pessoal não eram o tema central desse livro, que se preocupava mais com os aspectos ecológicos e éticos de nossas escolhas alimentares. (Embora eu tenha descoberto que, quase sempre, as melhores escolhas éticas e ambientais também são as mais saudáveis — uma notícia de fato ótima.) Mas muitos leitores queriam saber, após terem gastado algumas centenas de páginas seguindo o meu acompanhamento das cadeias alimentares que nos alimentam, o seguinte: “Tudo bem, mas o que devo comer?” E depois de ter ido aos currais de confinamentos de engorda, às instalações de processamento de alimentos, às fazendas industriais orgânicas e às fazendas e ranchos locais, o que você come? Perguntas justas, embora me pareça um sintoma de nossa atual confusão em relação à comida essa necessidade que as pessoas têm de consultar um jornalista, ou, no caso, um nutricionista, ou médico ou a pirâmide alimentar do governo sobre uma questão tão elementar para nossa conduta cotidiana como seres humanos.
Quer dizer, que outro animal precisa de ajuda profissional para decidir o que deve comer? Como somos onívoros — criaturas que comem quase tudo o que a natureza tem a oferecer e que efetivamente necessitam de uma dieta variada para serem saudáveis, a questão sobre o que comer é de certa forma mais complicada para nós do que para, digamos, uma vaca. No entanto, ao longo de quase toda a história da humanidade os homens acharam a resposta sem a ajuda de especialistas. Para nos orientar tivemos, em vez disso, a cultura, que pelo menos no que tange à comida é de fato apenas um eufemismo para designar nossa mãe. O que comer, o quanto comer de um alimento, em que ordem comê-lo, com que e quando e com quem comer é um conjunto de perguntas que ao longo de quase toda a história humana vem passando de pai para filho, sem muita controvérsia nem muita complicação.
Nas últimas décadas, porém, mamãe perdeu grande parte de sua autoridade sobre o cardápio do jantar, cedendo-a a cientistas e marqueteiros da alimentação (muitas vezes uma aliança malsã de ambos) e, em menor grau, ao governo, com suas diretrizes alimentares permanentemente em modificação, suas regras para os rótulos dos alimentos e suas pirâmides inexplicáveis. Pense nisso: não comemos mais o que nossas mães comiam na infância ou, no caso, o que nossas mães nos davam de comer quando éramos crianças. Isso é, historicamente falando, uma situação inusitada.
Minha mãe se criou nas décadas de 1930 e 1940 com a alimentação judaico-americana tradicional, típica das famílias recém-emigradas da Rússia ou da Europa Oriental: repolho recheado, miúdos, panquequinhas de queijo, kreplach, knishes recheados com batata ou fígado de galinha e hortaliças que eram, muitas vezes, cozidas em gordura de galinha ou de pato, extraída por ela.
Eu nunca comia essas coisas quando era pequeno, exceto quando ia à casa de meus avós. Minha mãe, uma cozinheira de mão-cheia e criativa cujos cardápios eram moldados pelas tendências alimentares cosmopolitas da Nova York dos anos 60 (suas influências teriam incluído a Feira Mundial de 1964; Julia Child e Craig Claiborne; cardápios dos restaurantes de Manhattan da época, e, naturalmente, o crescente martelar do marketing alimentício), nos servia um cardápio que se alternava e, a cada semana, completava uma volta ao mundo culinária: boeuf bourguignon ou estrogonofe de carne às segundas-feiras; coq au vin ou frango assado no forno (empanado em flocos de milho Kellogg’s) às terças; pão de carne ou bife com molho de pimentão à chinesa às quartas (sim, comia-se muita carne); espaguete ao pomodoro com lingüiça italiana às quintas; e em suas noites de folga, nos fins de semana, um congelado Swanson ou uma quentinha de comida chinesa. Ela cozinhava com óleo Crisco ou Wesson em vez de gordura de galinha ou pato e usava margarina em vez de manteiga porque absorvia a ortodoxia nutricional da época, que afirmava que essas gorduras modernas eram mais saudáveis. (Epa!)
Hoje não como nada disso — nem minha mãe, que também evoluiu. Seus pais não reconheceriam a comida que botamos na mesa, a não ser, talvez, a manteiga, que voltou. Hoje, nos Estados Unidos, a cultura da comida está mudando mais de uma vez a cada geração, o que é historicamente inédito — e atordoante.
O que provoca uma mudança tão contínua na dieta americana? Um motivo é a máquina de 32 bilhões de dólares do marketing da alimentação, que prospera na mudança pela mudança. Outro é a instabilidade da ciência da nutrição, que, dependendo do ponto de vista, faz avançar constantemente nosso conhecimento sobre dieta e saúde ou apenas vive mudando de idéia por ser uma ciência falha que sabe muito menos do que quer admitir. Parte do que tirou a cultura alimentar de meus avós da mesa americana foi a opinião científica oficial, que a partir de 1960 concluiu que a gordura animal era uma substância mortal. Depois havia os fabricantes de alimentos, que ganhavam muito pouco com a culinária de minha avó porque ela fazia muita coisa a partir do zero — até extrair as gorduras com que cozinhava. Ao desenvolver a “ciência mais moderna”, eles conseguiram persuadir a filha dela das virtudes dos óleos vegetais hidrogenados, os que ora tomamos conhecimento de que podem ser, bem... uma substância mortal.
Cedo ou tarde, tudo de consistente que nos contaram sobre as ligações entre nossa dieta e nossa saúde parece ser varrido pelo vendaval dos estudos mais recentes. Pense nas últimas descobertas.
Em 2006 chegou a notícia de que uma dieta com pouca gordura, considerada durante muito tempo uma proteção contra o câncer, talvez não seja proteção alguma — vindo da sólida “Iniciativa para a Saúde Feminina” subvencionada pelo governo federal norte-americano, que tampouco conseguiu encontrar ligação entre uma dieta com pouca gordura e o risco de doenças coronarianas.
De fato, toda a ortodoxia nutricional sobre as gorduras alimentares dá a impressão de estar desmoronando, como será visto. Em 2005, aprendemos que as fibras alimentares talvez não ajudem, como nos contaram confiantemente durante anos, a prevenir o câncer colorretal e as doenças cardíacas. Então, no outono de 2006, dois estudos prestigiosos sobre as gorduras ômega-3 publicados ao mesmo tempo chegaram a conclusões espantosamente diferentes. Enquanto o Instituto de Medicina da Academia Nacional de Ciências encontrou poucas provas conclusivas de que comer peixe fizesse muito bem ao coração (e pode fazer mal ao cérebro, porque muitos peixes estão contaminados com mercúrio), um estudo de Harvard trouxe a notícia promissora de que comer algumas porções de peixe por semana (ou tomar uma quantidade suficiente de comprimidos de óleo de peixe) pode diminuir em mais de um terço o risco de se morrer de ataque cardíaco. Não espanta que os ácidos graxos ômega-3 estejam preparados para se tornar o farelo de aveia de nossa época enquanto os cientistas da alimentação correm para elaborar microcápsulas de óleo de peixe e algas para injetá-las em alimentos antes totalmente terrestres, como pães e massas, leite, iogurtes e queijos, os quais, muito em breve, podem ter certeza, ostentarão novas alegações suspeitas quanto a benefícios para a saúde. (Espero que você se lembre da regra que está sendo discutida.)
A essa altura você deve estar sentindo a dissonância cognitiva do comprador de supermercado ou leitor de seções de ciência,bem como alguma nostalgia da simplicidade e da consistência das primeiras palavras deste livro. Palavras que continuo preparado para defender contra os ventos instáveis da ciência nutricional e do marketing da indústria da alimentação, e defenderei. Mas, antes de fazê-lo, é importante entender como chegamos ao nosso atual estado de confusão e ansiedade nutricional. Esse é o tema da primeira parte desse livro — “A era do nutricionismo”.
A história de como as questões mais básicas sobre o que comer se complicaram revela muito sobre os imperativos institucionais da indústria alimentícia, da ciência da nutrição e — hum! — do jornalismo, três grupos em posição de ganhar muito com a confusão generalizada em torno da pergunta mais elementar com que um onívoro se defronta. Humanos decidindo o que comer sem orientação profissional — coisa que vêm fazendo com extraordinário sucesso desde que desceram das árvores — é algo pouquíssimo lucrativo para uma empresa do ramo de alimentação, fracasso profissional certo para um nutricionista e simplesmente um tédio para um redator ou repórter de jornal. (Ou, no caso, para os que vão comer. Quem quer ouvir, mais uma vez, que se deve “comer mais frutas e hortaliças”?) Então, como uma imensa nuvem negra, formou-se uma grande Conspiração da Complexidade Científica em torno das questões mais simples da nutrição — em proveito de todos os envolvidos. Com exceção talvez do pretenso beneficiário de todos esses conselhos nutricionais: nós, nossa saúde e nossa felicidade em face da alimentação. Pois o mais importante a saber em relação à campanha para profissionalizar as recomendações alimentares é que elas não nos tornaram mais saudáveis. Ao contrário: como defendo na primeira parte, a maioria dos conselhos nutricionais que recebemos ao longo dos últimos cinqüenta anos (e em particular o conselho de substituir as gorduras em nossa dieta por carboidratos) na verdade nos tornou menos saudáveis e consideravelmente mais gordos.
Minha luta aqui é em prol da saúde e da felicidade diante do que comemos. Fazer isso requer um exercício que, à primeira vista, pode parecer supérfluo, se não absurdo: oferecer uma defesa da comida e da alimentação. O fato de a comida e a alimentação necessitarem de defesa pode parecer incoerente numa época em que a “super-nutrição” surge como uma ameaça mais séria à saúde pública do que a subnutrição. Mas afirmo que praticamente tudo o que consumimos hoje não é mais, em sentido estrito, comida, e a forma como estamos consumindo essas coisas — no carro, na frente da tevê e, cada vez mais, sozinhos — não é realmente comer, pelo menos no sentido em que a civilização entende o termo. Jean Anthelme Brillat-Savarin, gastrônomo do século XVIII, fez uma útil distinção entre a atividade alimentar dos animais, que “se alimentam”, e a dos seres humanos, que comem, ou fazem refeições, uma prática, sugeriu ele, que se deve tanto à cultura quanto à biologia.
Mas, se comida e alimentação estão em posição de necessitar de defesa, de quem ou de que precisam se defender? Da ciência da nutrição, de um lado, e da indústria alimentícia, do outro — e das complicações inúteis que ambas criaram em torno da alimentação. Para comer estamos cada vez mais nas garras de um Complexo Nutricional Industrial — que compreende cientistas e marqueteiros da alimentação bem-intencionados, ainda que propensos a errar, ansiosos para explorar cada mudança no consenso nutricional. Juntos, e com alguma ajuda crucial do governo, eles construíram uma ideologia de nutricionismo que, entre outras coisas, convenceu a maioria de nós de três mitos perniciosos: 1) o mais importante não é o alimento, mas sim o “nutriente”; 2) por ser este invisível e incompreensível para todo mundo, menos para os cientistas, precisamos da ajuda de especialistas para decidir o que comer; 3) o objetivo da alimentação é promover um conceito estrito de saúde física. Uma vez que, por essa ótica, o alimento é, em primeiro lugar, uma questão de biologia, precisamos comer “cientificamente” — pelo nutriente e pelo número e sob a orientação de especialistas.
Se essa maneira de encarar o alimento não lhe parece pelo menos um pouquinho estranha, deve ser porque o raciocínio nutricionista se tornou tão onipresente que ficou invisível. Esquecemos que, historicamente, as pessoas comem por muitas razões além da necessidade biológica. Comida também tem a ver com prazer, comunidade, família e espiritualidade, com a nossa relação com o mundo natural e com a expressão da nossa identidade.
Já que os seres humanos fazem refeições juntos, a alimentação tem relação tanto com a cultura quanto com a biologia.
A idéia de que alimentação deveria, em primeiro lugar, ter a ver com a saúde do corpo é relativamente nova e, penso, destrutiva — destrói não só o prazer de comer, o que seria bastante ruim, mas, de modo paradoxal, também nossa saúde. De fato, não há no mundo povo mais preocupado com a saúde e as consequências para a saúde de suas escolhas alimentares do que nós, americanos — e não há povo que tenha tantos problemas de saúde relacionados com a dieta. Estamos nos tornando uma nação de ortoréxicos: pessoas com uma obsessão doentia por uma alimentação saudável.*
[* Ortorexia – do grego orto (direito e correto) + orexe (apetite) + ia = apetite correto. O termo foi proposto pelo médico americano Steven Bratman. Embora a ortorexia ainda não seja uma disfunção alimentar reconhecida pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, está em curso uma investigação acadêmica.]
Os cientistas ainda não testaram a hipótese, mas estou disposto a apostar que quando o fizerem encontrarão uma correlação inversa entre a quantidade de tempo que as pessoas gastam se preocupando com nutrição e sua saúde e felicidade geral. Essa é, afinal, a lição implícita do paradoxo francês, assim chamado não pelos franceses (Quel paradoxe?), mas por nutricionistas americanos que não conseguem compreender como um povo que curte tanto sua comida como os franceses, e come com despreocupação tantos nutrientes tachados de impróprios por nutricionistas, poderia ter índices bem mais baixos de doenças cardíacas do que temos com nossas dietas com pouca gordura minuciosamente concebidas. Talvez seja hora de encarar o paradoxo americano: uma população notadamente doentia preocupada com nutrição e dieta e com a ideia de se alimentar de maneira saudável.
Não tenho a intenção de sugerir que todos estaríamos bem se parássemos de nos preocupar com comida ou com o estado de nossa saúde alimentar: Deixe que eles comam Twinkies! Há, de fato, algumas boas razões para se preocupar. O surgimento do nutricionismo reflete preocupações legítimas de que a dieta americana, que está quase se tornando a dieta mundial, se transformou de maneira a nos deixar cada vez mais doentes e gordos. Quatro das dez principais causas de morte hoje são doenças crônicas ligadas à dieta: doenças coronarianas, diabetes, AVC e câncer. É certo que a ascensão da incidência dessas doenças crônicas se deve, em parte, mas só em parte, ao fato de não estarmos morrendo antes de doenças infecciosas: mesmo dando o desconto da idade, muitas das chamadas doenças da civilização eram muito menos comuns há um século — e continuam raras em lugares onde as pessoas não comem da forma como comemos.
Estou falando, é claro, do óbvio que ninguém quer ver sempre que discutimos dieta e saúde: a “dieta ocidental”. Este é o tema da segunda parte do livro, em que sigo a história da mudança mais radical na forma como os seres humanos se alimentam desde a descoberta da agricultura. Todas as nossas incertezas sobre nutrição não deveriam esconder o simples fato de que as doenças crônicas que agora matam a maioria de nós começaram com a industrialização de nossa comida: com o surgimento de alimentos altamente processados e grãos altamente refinados; o uso de produtos químicos para cultivar plantas e criar animais em enormes monoculturas; a superabundância de calorias baratas provenientes de açúcar e gordura produzidos pela agricultura moderna e a redução da diversidade biológica da dieta humana a alguns alimentos básicos, notadamente trigo, milho e soja. Essas mudanças nos deram a dieta ocidental que achamos natural: montes de alimentos e carne processados, montes de gordura e açúcar adicionados, montes de tudo — exceto hortaliças, frutas e grãos integrais.
Já sabemos há muito tempo que uma dieta dessas deixa as pessoas doentes e gordas. No início do século XX, um intrépido grupo de médicos e profissionais da saúde lotados do outro lado do Atlântico observou que em qualquer lugar onde se abrisse mão da alimentação tradicional em prol da dieta ocidental logo aparecia uma série previsível de doenças ocidentais, incluindo obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e câncer. Esses observadores chamaram tais distúrbios de doenças ocidentais, e embora os mecanismos causais precisos fossem (e continuem) incertos, não tinham dúvidas de que essas doenças crônicas apresentavam uma etiologia comum: a dieta ocidental.
Ademais, as dietas tradicionais que os novos alimentos ocidentais desalojaram eram muito diferentes: várias populações mantinham dietas que chamaríamos de muito gordurosas, pouco gordurosas ou com excesso de carboidrato, compostas só de carnes ou só de vegetais; de fato, já houve dietas tradicionais baseadas em quase qualquer tipo de alimento puro que se possa imaginar. O que isso sugere é que o animal humano está bem adaptado a muitas dietas diferentes. A dieta ocidental, porém, não é uma delas.
Eis então um fato simples mas crucial sobre dieta e saúde,porém, curiosamente, um fato que o nutricionismo não enxerga, provavelmente porque tenha se desenvolvido com a industrialização de nossa comida e, assim, a considere natural. O nutricionismo prefere ficar mexendo na dieta ocidental, ajustando os vários nutrientes (diminuindo a gordura, aumentando as proteínas) e enriquecendo alimentos processados a, antes de tudo, questionar seu valor. O nutricionismo é, em certo sentido, a ideologia oficial da dieta ocidental e, assim, não se pode esperar que vá questioná-la de forma efetiva.
Mas nós podemos. Inteirando-nos mais sobre a natureza da dieta ocidental — tentando entendê-la não só filosófica mas também histórica e ecologicamente — podemos começar a desenvolver um modo diferente de pensar sobre o alimento que talvez aponte um caminho para sairmos de nossa enrascada. Ao fazer isso, temos dois fatos substanciais e muito encorajadores para nos guiar: primeiro, que os seres humanos, historicamente, têm sido saudáveis com muitas dietas diferentes; e, segundo, que, como será visto, a maioria das mudanças em nossos alimentos e em nossa saúde causadas pela industrialização da alimentação pode ser revertida. Em termos simples, podemos fugir da dieta ocidental e suas consequências.
Esta é a responsabilidade da terceira e última parte de Em defesa da comida: propor algumas dezenas de regras pessoais de alimentação que conduzam não só a uma saúde melhor mas também a um prazer maior de comer, dois objetivos que acabam se reforçando mutuamente.
Essas recomendações são um pouco diferentes das diretrizes nutricionais a que você deve estar acostumado. Não são, por exemplo, estritamente prescritivas. Quem sou eu — quem é qualquer um? — para dizer o que comer no jantar? Não, essas sugestões são mais como algoritmos alimentícios, instrumentos mentais para pensar por intermédio de nossas escolhas alimentícias. Não havendo uma resposta única à pergunta “O que comer?”, tais diretrizes produzirão tantos cardápios diferentes quantas forem as pessoas que as estiverem usando.
Essas regras práticas também não são formuladas no jargão da ciência da nutrição. Não porque a ciência da nutrição não tenha nada de importante a nos ensinar — ela tem, pelo menos quando evita as armadilhas do reducionismo e do excesso de confiança —, mas porque acho que temos muito, se não mais, a aprender sobre alimentação com a história, a cultura e a tradição. Estamos acostumados, em todas as questões ligadas à saúde, a presumir que a ciência deve ter a última palavra, mas no caso da alimentação outras fontes de conhecimento e formas de saber podem ser igualmente poderosas, às vezes até mais. E embora eu, inevitavelmente, confie na ciência (até na ciência reducionista), ao tentar entender muitas questões sobre saúde e alimentação, um de meus objetivos neste livro é mostrar as limitações de uma compreensão estritamente científica de algo tão ricamente complexo e multifacetado como o alimento. A ciência tem muito de valioso a nos ensinar sobre comida, e talvez algum dia os cientistas “solucionem” o problema da dieta, criando a refeição nutricionalmente ideal em uma pílula, mas, por ora, e pelo futuro previsível, deixar os cientistas decidirem o cardápio seria um erro. Eles não sabem o suficiente.
Você pode muito bem, e com razão, se perguntar quem sou eu para lhe dizer como comer. Cá estou eu recomendando-o a rejeitar o conselho da ciência e da indústria — e aí vou em frente alegremente oferecendo minhas próprias indicações. Então, o que me autoriza a ter a pretensão de falar? Falo, sobretudo, em nome da tradição e do bom senso. Já sabemos quase tudo que precisamos saber sobre como comer, ou soubemos até permitir que os especialistas da nutrição e os anunciantes abalassem nossa confiança no bom senso, na tradição, no testemunho de nossos sentidos e na sabedoria de nossas mães e avós.
Não que tivéssemos muita escolha quanto a isso. Na década de 1960 tornou-se quase impossível manter formas tradicionais de alimentação em face da industrialização de nossos alimentos. Se quisesse comer hortifrutigranjeiros cultivados sem produtos químicos sintéticos ou carne de gado criado no pasto sem produtos farmacêuticos, não seria possível. O supermercado tornou-se o único lugar para comprar comida, e a comida de verdade sumia depressa de suas prateleiras, para ser substituída pela moderna cornucópia de produtos extremamente processados com aspecto de comida. E porque tantas dessas novidades mentiam aos nossos sentidos com adoçantes e aromas de imitação, não podíamos mais confiar no paladar nem no olfato para saber o que estávamos comendo.
A maioria de minhas sugestões se resume a estratégias para fugir da dieta ocidental, mas antes do ressurgimento dos mercados do produtor, do surgimento do movimento orgânico e do renascimento da agricultura local que agora está acontecendo nos Estados Unidos, sair do sistema da alimentação convencional simplesmente não era uma opção realista para a maioria das pessoas. Agora é. Estamos entrando numa era de alimentação pós-industrial; pela primeira vez em uma geração é possível deixar para trás a dieta ocidental sem ter também que deixar para trás a civilização. E quanto mais houver pessoas que votem com seus garfos por um tipo diferente de alimento, mais comum e acessível ele se tornará. Entre outras coisas, este livro é o manifesto de alguém que come, um convite para que você se una ao movimento que está renovando nosso sistema alimentício em nome da saúde — saúde no sentido mais amplo do termo.
Duvido que o último terço deste livro pudesse ter sido escrito há vinte anos, pelo menos porque não haveria maneira de comer da forma como proponho sem voltar à terra e ao cultivo de todos os alimentos. Seria o manifesto de um insensato. Só havia de fato um tipo de comida no cardápio nacional, presente em tudo que a indústria e o nutricionismo estivessem servindo. Não é mais assim. Quem come, agora, tem opções reais, e essas opções têm consequências reais para nossa saúde, para a saúde da terra e para a saúde de nossa cultura alimentar — todas, como será visto, inextricavelmente ligadas. O fato de alguém precisar escrever um livro aconselhando as pessoas a “comer comida” pode ser encarado como uma medida de nossa alienação e confusão. Ou podemos escolher ver isso sob um prisma mais positivo e nos considerar felizes por haver mais uma vez comida de verdade para comermos.
Não, as prateleiras e as geladeiras ainda estavam sobrecarregadas com pacotes, caixas e sacos de vários comestíveis, que na verdade eram mais a cada ano, mas muitos dos alimentos tradicionais de supermercado estavam sendo substituídos por “nutrientes”, que não são a mesma coisa. Onde antes os nomes familiares de comestíveis reconhecíveis — coisas como ovos, cereais matinais ou salgadinhos — sustentavam a posição mais importante nos pacotes coloridos que abarrotavam os corredores, termos novos de ressonância científica como “colesterol”, “fibra” e “gordura saturada” começaram a vir estampados em destaque. Mais importante do que simples alimentos, achava-se que a presença ou a ausência dessas substâncias invisíveis conferia benefícios à saúde de quem os consumia. A mensagem implícita era que os alimentos, em comparação, eram itens toscos, antiquados e, sem sombra de dúvida, não científicos — quem era capaz de dizer o que continham? Mas os nutrientes — aqueles compostos químicos e sais minerais nos alimentos que os cientistas identificavam como importantes para a nossa saúde — reluziam com a promessa da certeza científica.
Coma mais dos certos, menos dos errados e viverá mais, evitará doenças crônicas e emagrecerá.
O conceito de nutriente existe desde o início do século XIX.
Foi quando William Prout, médico e químico inglês, identificou os três principais componentes dos alimentos — proteínas, gorduras e carboidratos —, que ficariam conhecidos como macronutrientes. Consolidando a descoberta de Prout, Justus von Liebig, grande cientista alemão considerado um dos fundadores da química orgânica, acrescentou alguns minerais à grande árvore e declarou que o mistério da nutrição animal — como o alimento se transforma em carne e energia — havia sido solucionado. Trata-se do mesmo Liebig que identificou os macronutrientes do solo — nitrogênio, fósforo e potássio (conhecidos dos fazendeiros e dos jardineiros pelos símbolos da tabela periódica: N, P, K). Liebig afirmou que tudo de que as plantas precisam para viver e crescer são esses três elementos, e só. Assim como as plantas, as pessoas: em 1842, Liebig propôs uma teoria do metabolismo que explicava a vida estritamente em termos de um pequeno punhado de nutrientes, sem recurso a forças metafísicas tais como o “vitalismo”.
Desvendado o mistério da nutrição humana, Liebig em seguida desenvolveu um extrato de carne — o Extratum Carnis de Liebig —, que veio a ser um caldo de carne, e elaborou a primeira fórmula de alimento para bebês, que consistia em leite de vaca, farinha de trigo, farinha maltada e bicarbonato de potássio.
Liebig, o pai da ciência nutricional moderna, acuou os alimentos e forçou-os a revelar seus segredos químicos. Mas o consenso pós-Liebig de que a ciência de então sabia muito bem o que estava acontecendo nos alimentos não durou muito. Os médicos começaram a notar que muitos dos bebês alimentados exclusivamente com o leite de Liebig não se desenvolviam bem. (Não é de surpreender, já que faltavam em sua fórmula todas as vitaminas e vários aminoácidos e gorduras essenciais.) Os médicos que constataram a frequência com que os marinheiros adoeciam nas longas viagens oceânicas, mesmo quando recebiam suprimentos adequados de proteínas, carboidratos e gordura, começaram a achar que Liebig talvez tivesse deixado de ver algumas coisinhas nos alimentos.
Os químicos claramente estavam passando por cima de alguma coisa — alguns ingredientes presentes nos vegetais frescos (como laranjas e batatas) que milagrosamente curavam os marinheiros.
Essa observação levou à descoberta, no início do século XX, do primeiro conjunto de micronutrientes, que o bioquímico polonês Casimir Funk, retomando ideias vitalistas mais antigas, batizou de “vitaminas”, em 1912 (“vita”, vida, e “aminas”, compostos orgânicos organizados em torno do nitrogênio).
As vitaminas deram grande contribuição ao prestígio da ciência nutricional. Essas moléculas especiais, que primeiro foram isoladas dos alimentos e mais tarde sintetizadas em laboratório, podiam curar deficiências nutricionais como escorbuto e beribéri quase da noite para o dia, numa demonstração convincente do poder redutivo da química. A partir da década de 1920 as vitaminas viraram moda para a classe média, um grupo que não é notadamente afetado pelo beribéri nem pelo escorbuto. Mas passou-se a acreditar que tais moléculas mágicas também promoviam o crescimento das crianças, uma vida longa para os adultos e, numa expressão da época, “saúde positiva” para todos. (E o que seria exatamente “saúde negativa”?) As vitaminas trouxeram uma espécie de glamour para a ciência da nutrição, e embora determinados segmentos da elite então começassem a comer segundo o ponto de vista dos especialistas em vitaminas, só de fato no fim do século XX os nutrientes passaram a substituir a comida na visão popular do que significa comer.
Não houve um acontecimento isolado marcando a passagem da ideia de se comer comida para a de se comer nutrientes, embora, considerando o passado, uma briga política pouco notada em Washington em 1977 pareça ter ajudado a empurrar a cultura americana por essa trilha infeliz e mal iluminada. Reagindo a relatórios de um alarmante aumento de doenças crônicas ligadas à dieta — incluindo doenças do coração, câncer, obesidade e diabetes — a Comissão Superior do Senado para Nutrição e Necessidades Humanas, presidida pelo senador George McGovern, de Dakota do Sul, realizou sessões sobre o problema. A comissão fora formada em 1968 com a missão de eliminar a desnutrição, e seu trabalho levara à criação de vários importantes programas de assistência alimentar. Partir agora para resolver a questão da dieta e das doenças crônicas na população em geral era uma certa extrapolação de objetivos, mas tudo em nome de uma boa causa, à qual ninguém poderia fazer objeção.
Após ouvir dois dias de depoimentos sobre dieta e doenças fatais, a comissão — composta não de cientistas ou médicos mas sim de advogados e (hum!) jornalistas — começou a preparar o que tinha todas as razões para presumir que seria um documento incontrovertido, o chamado Metas alimentares para os Estados Unidos [Dietary Goals]. A comissão ficou sabendo que enquanto as taxas de doença coronariana haviam subido vertiginosamente nos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Mundial, certas outras culturas que consumiam dietas tradicionais baseadas principalmente em vegetais apresentavam baixíssimos índices de doenças crônicas. Os epidemiologistas também observaram que durante os anos de guerra, quando a carne e os laticínios eram estritamente racionados, o índice de doenças do coração despencou temporariamente, para subir novamente depois que a guerra acabou.
A partir da década de 1950 difundiu-se cada vez mais nos meios científicos a opinião de que o consumo de gordura e colesterol alimentar, oriundos em grande parte da carne e dos laticínios, era responsável pelo aumento da ocorrência das doenças do coração no século XX. A “hipótese lipídica”, como foi chamada, já havia sido adotada pela Associação Americana do Coração, que em 1961 passara a recomendar uma “dieta prudente” pobre em gorduras saturadas e colesterol oriundos de produtos de origem animal. É verdade, a prova propriamente dita da hipótese lipídica era fraquíssima em 1977 — continuava no nível da hipótese, mas uma hipótese prestes a obter aceitação geral.
Em janeiro de 1977 a comissão publicou um conjunto de diretrizes dietéticas bastante diretas, convocando os americanos a cortar o consumo de carne vermelha e laticínios. Em semanas, uma explosão de críticas, emanadas principalmente das indústrias de carne e de laticínios, engoliu a comissão, e o senador McGovern que tinha muitos pecuaristas entre os seus eleitores de Dakota do Sul) foi forçado a bater em retirada. As recomendações da comissão foram reescritas às pressas. A conversa clara sobre alimentos propriamente ditos — a comissão aconselhara os americanos a “reduzir o consumo de carne” — foi substituída por um meio termo engenhoso: “Escolha carnes, aves e peixes que reduzam o consumo de gorduras saturadas.”
Desconsidere por ora as virtudes porventura existentes de uma dieta com pouca carne e/ou pouca gordura, questões às quais voltarei, e concentre-se um instante na linguagem. Pois com essas mudanças súbitas de formulação toda uma maneira de pensar sobre comida e saúde sofreu uma tremenda transformação. Primeiro, repare que a mensagem categórica “coma menos” de um alimento em particular — nesse caso carne — fora deixada de lado; não a procure em nenhum pronunciamento oficial do governo dos Estados Unidos sobre alimentação. Você pode dizer o que quiser sobre este ou aquele alimento, mas não está autorizado oficialmente a mandar as pessoas comerem menos deles ou a indústria em questão vai fazer você em pedacinhos. Mas há um caminho para contornar esse obstáculo inamovível, e foram os assessores de McGovern que o divulgaram: Não fale mais de alimentos, só de nutrientes. Repare como, nas diretrizes revistas, distinções entre entidades tão diferentes quanto carne de vaca, frango e peixe desapareceram. Esses três veneráveis alimentos, cada qual representando não apenas uma espécie diferente, mas também uma classe taxonômica inteiramente diversa, agora estavam reunidos como meros sistemas de fornecimento de um único nutriente. Repare também como a nova linguagem isenta os próprios alimentos.
Agora o culpado é uma substância obscura, invisível, sem sabor — e sem ligações políticas —, que pode ou não se esconder nas chamadas gorduras saturadas.
A capitulação linguística não redimiu McGovern de seu erro.
Na eleição seguinte, em 1980, o lobby da carne conseguiu impedir que o senador conquistasse o quarto mandato, enviando um aviso inconfundível a quem quer que desafiasse a dieta americana, e, em particular, o naco de proteína animal chapado no meio de seu prato. Desde então, as diretrizes alimentares do governo americano evitariam usar linguagem clara sobre alimentos básicos, cada um dos quais tem sua associação do ramo no Capitólio, e viriam disfarçadas de eufemismos científicos e falando de nutrientes, entidades que poucos americanos (incluindo, como iremos descobrir, cientistas da nutrição) entendiam realmente, mas que, com a notável exceção da sacarose, carecem de lobbies poderosos em Washington.*
A lição do fiasco McGovern foi rapidamente absorvida por todos os que se pronunciariam sobre a dieta americana. Quando a Academia Nacional de Ciências, alguns anos depois, examinou a questão dieta e câncer, teve o cuidado de formular suas recomendações nutriente por nutriente em vez de alimento por alimento, para evitar ofender interesses poderosos. Agora sabemos que a comissão de 13 cientistas da academia adotou esse enfoque passando por cima das objeções de pelo menos dois de seus membros, que afirmavam que a maioria dos dados científicos disponíveis apontava para conclusões sobre alimentos, não sobre nutrientes.
Segundo T. Colin Campbell, bioquímico nutricional de Cornell que participou da comissão, todos os estudos da população humana ligando a gordura alimentar ao câncer na verdade mostravam que os grupos em que havia maior incidência de câncer consumiam não só mais gorduras, mas também mais alimentos de origem animal e menos de origem vegetal. “Isso significava que esses cânceres poderiam muito bem ser causados por proteína animal, colesterol alimentar, outro elemento encontrado exclusivamente em alimentos baseados em produtos de origem animal ou por [* A sacarose é a exceção que comprova a regra. Só o poder do lobby do açúcar em Washington pode explicar o fato de que as recomendações oficiais dos Estados Unidos para o nível máximo permitido de açúcares livres na dieta sejam surpreendentemente 25% das calorias diárias. Para uma ideia de como isso é permissivo, a Organização Mundial da Saúde recomenda que não mais de 10% das calorias diárias venham de açúcares suplementares, uma referência que o lobby americano do açúcar trabalha furiosamente para derrubar. Em 2004, apelou para o Departamento de Estado do governo Bush numa campanha para modificar a recomendação e ameaçou fazer lobby no Congresso para cortar subsídios à OMS se esta não se retratasse. Talvez devêssemos levantar as mãos para o céu pelo fato de os interesses das gorduras saturadas ainda não terem organizado um lobby desse tipo.] uma carência de alimentos de origem vegetal”, disse Campbell anos mais tarde. O argumento encontrou ouvidos surdos.
Da mesma forma, no caso dos “bons alimentos”, os nutrientes também prevaleciam: a linguagem do relatório final ressaltava os benefícios dos antioxidantes nos vegetais e não dos próprios vegetais. Joan Gussow, nutricionista da Universidade de Columbia que participou da comissão, condenou o foco nos nutrientes em vez de nos alimentos. “A mensagem realmente importante na epidemiologia, que é tudo o que tínhamos para prosseguir, era que algumas hortaliças e cítricos pareciam proteger contra o câncer.
Mas essas seções do relatório foram redigidas como se fossem a vitamina C nos cítricos ou o betacaroteno nas hortaliças os responsáveis pelo efeito. Continuei mudando de discurso para falar sobre ‘alimentos que contêm vitamina C’ e ‘alimentos que contêm carotenoides’. Porque, como é possível discernir entre os componentes da cenoura ou do brócolis? Há centenas de carotenoides. Mas os bioquímicos tiveram sua resposta: ‘Não dá para fazer um teste com base em brócolis.’”
Então os nutrientes ganharam dos alimentos. O recurso da comissão ao reducionismo científico teve a grande virtude de ser politicamente conveniente (no caso da carne e dos laticínios) e, para esses herdeiros científicos de Justus von Liebig, intelectualmente simpático. Com cada um de seus capítulos focado num único nutriente, o esboço final de Diet, Nutrition and Cancer formulava suas recomendações em termos de gorduras saturadas e antioxidantes em vez de carne e brócolis.
Ao fazer isso, o relatório de 1982 da Academia Nacional de Ciências ajudou a codificar a nova língua alimentar oficial, a que todos ainda falamos. A indústria e a mídia logo seguiram o exemplo, e termos como poliinsaturado, colesterol, monoinsaturado, carboidrato, fibra, polifenóis, aminoácidos, flavonóis, carotenóides, antioxidantes, probióticos e fitoquímicos logo colonizaram grande parte do espaço cultural previamente ocupado pelo material tangível antes conhecido como comida. Foi o início da Era do Nutricionismo.
Odeio abrir o jogo logo aqui no início de um livro dedicado ao assunto, e fico tentado a complicar as coisas para poder ir esticando o tema por mais algumas centenas de páginas. Tentarei resistir, mas irei adiante e acrescentarei mais alguns detalhes para enriquecer as recomendações. Como, por exemplo, comer um pouco de carne não mata ninguém, embora talvez seja melhor encará-la como acompanhamento do que como prato principal.
E é melhor para você comer alimentos frescos e integrais do que industrializados. É isso o que quero dizer com a recomendação “coma comida”, o que não é tão simples quanto parece. Pois, enquanto antigamente só se podia comer comida, hoje há milhares de outras substâncias comestíveis com aparência de comida no supermercado. Esses novos produtos da ciência da alimentação vêm, muitas vezes, em embalagens cobertas de alegações quanto aos benefícios que trazem para a saúde, o que me leva a outro conselho um tanto incoerente: quem se preocupa com a saúde provavelmente deveria evitar produtos que fazem alegações quanto a benefícios para a saúde. Por quê? Porque uma alegação desse tipo num produto alimentício é forte indicação de que não se trata de fato de comida, e comida é o que você deseja comer.
Por aí você vê como as coisas podem se complicar depressa.
Iniciei essa busca pela identificação de algumas regras simples sobre alimentação depois de publicar O dilema do onívoro, em 2006. Questões de saúde pessoal não eram o tema central desse livro, que se preocupava mais com os aspectos ecológicos e éticos de nossas escolhas alimentares. (Embora eu tenha descoberto que, quase sempre, as melhores escolhas éticas e ambientais também são as mais saudáveis — uma notícia de fato ótima.) Mas muitos leitores queriam saber, após terem gastado algumas centenas de páginas seguindo o meu acompanhamento das cadeias alimentares que nos alimentam, o seguinte: “Tudo bem, mas o que devo comer?” E depois de ter ido aos currais de confinamentos de engorda, às instalações de processamento de alimentos, às fazendas industriais orgânicas e às fazendas e ranchos locais, o que você come? Perguntas justas, embora me pareça um sintoma de nossa atual confusão em relação à comida essa necessidade que as pessoas têm de consultar um jornalista, ou, no caso, um nutricionista, ou médico ou a pirâmide alimentar do governo sobre uma questão tão elementar para nossa conduta cotidiana como seres humanos.
Quer dizer, que outro animal precisa de ajuda profissional para decidir o que deve comer? Como somos onívoros — criaturas que comem quase tudo o que a natureza tem a oferecer e que efetivamente necessitam de uma dieta variada para serem saudáveis, a questão sobre o que comer é de certa forma mais complicada para nós do que para, digamos, uma vaca. No entanto, ao longo de quase toda a história da humanidade os homens acharam a resposta sem a ajuda de especialistas. Para nos orientar tivemos, em vez disso, a cultura, que pelo menos no que tange à comida é de fato apenas um eufemismo para designar nossa mãe. O que comer, o quanto comer de um alimento, em que ordem comê-lo, com que e quando e com quem comer é um conjunto de perguntas que ao longo de quase toda a história humana vem passando de pai para filho, sem muita controvérsia nem muita complicação.
Nas últimas décadas, porém, mamãe perdeu grande parte de sua autoridade sobre o cardápio do jantar, cedendo-a a cientistas e marqueteiros da alimentação (muitas vezes uma aliança malsã de ambos) e, em menor grau, ao governo, com suas diretrizes alimentares permanentemente em modificação, suas regras para os rótulos dos alimentos e suas pirâmides inexplicáveis. Pense nisso: não comemos mais o que nossas mães comiam na infância ou, no caso, o que nossas mães nos davam de comer quando éramos crianças. Isso é, historicamente falando, uma situação inusitada.
Minha mãe se criou nas décadas de 1930 e 1940 com a alimentação judaico-americana tradicional, típica das famílias recém-emigradas da Rússia ou da Europa Oriental: repolho recheado, miúdos, panquequinhas de queijo, kreplach, knishes recheados com batata ou fígado de galinha e hortaliças que eram, muitas vezes, cozidas em gordura de galinha ou de pato, extraída por ela.
Eu nunca comia essas coisas quando era pequeno, exceto quando ia à casa de meus avós. Minha mãe, uma cozinheira de mão-cheia e criativa cujos cardápios eram moldados pelas tendências alimentares cosmopolitas da Nova York dos anos 60 (suas influências teriam incluído a Feira Mundial de 1964; Julia Child e Craig Claiborne; cardápios dos restaurantes de Manhattan da época, e, naturalmente, o crescente martelar do marketing alimentício), nos servia um cardápio que se alternava e, a cada semana, completava uma volta ao mundo culinária: boeuf bourguignon ou estrogonofe de carne às segundas-feiras; coq au vin ou frango assado no forno (empanado em flocos de milho Kellogg’s) às terças; pão de carne ou bife com molho de pimentão à chinesa às quartas (sim, comia-se muita carne); espaguete ao pomodoro com lingüiça italiana às quintas; e em suas noites de folga, nos fins de semana, um congelado Swanson ou uma quentinha de comida chinesa. Ela cozinhava com óleo Crisco ou Wesson em vez de gordura de galinha ou pato e usava margarina em vez de manteiga porque absorvia a ortodoxia nutricional da época, que afirmava que essas gorduras modernas eram mais saudáveis. (Epa!)
Hoje não como nada disso — nem minha mãe, que também evoluiu. Seus pais não reconheceriam a comida que botamos na mesa, a não ser, talvez, a manteiga, que voltou. Hoje, nos Estados Unidos, a cultura da comida está mudando mais de uma vez a cada geração, o que é historicamente inédito — e atordoante.
O que provoca uma mudança tão contínua na dieta americana? Um motivo é a máquina de 32 bilhões de dólares do marketing da alimentação, que prospera na mudança pela mudança. Outro é a instabilidade da ciência da nutrição, que, dependendo do ponto de vista, faz avançar constantemente nosso conhecimento sobre dieta e saúde ou apenas vive mudando de idéia por ser uma ciência falha que sabe muito menos do que quer admitir. Parte do que tirou a cultura alimentar de meus avós da mesa americana foi a opinião científica oficial, que a partir de 1960 concluiu que a gordura animal era uma substância mortal. Depois havia os fabricantes de alimentos, que ganhavam muito pouco com a culinária de minha avó porque ela fazia muita coisa a partir do zero — até extrair as gorduras com que cozinhava. Ao desenvolver a “ciência mais moderna”, eles conseguiram persuadir a filha dela das virtudes dos óleos vegetais hidrogenados, os que ora tomamos conhecimento de que podem ser, bem... uma substância mortal.
Cedo ou tarde, tudo de consistente que nos contaram sobre as ligações entre nossa dieta e nossa saúde parece ser varrido pelo vendaval dos estudos mais recentes. Pense nas últimas descobertas.
Em 2006 chegou a notícia de que uma dieta com pouca gordura, considerada durante muito tempo uma proteção contra o câncer, talvez não seja proteção alguma — vindo da sólida “Iniciativa para a Saúde Feminina” subvencionada pelo governo federal norte-americano, que tampouco conseguiu encontrar ligação entre uma dieta com pouca gordura e o risco de doenças coronarianas.
De fato, toda a ortodoxia nutricional sobre as gorduras alimentares dá a impressão de estar desmoronando, como será visto. Em 2005, aprendemos que as fibras alimentares talvez não ajudem, como nos contaram confiantemente durante anos, a prevenir o câncer colorretal e as doenças cardíacas. Então, no outono de 2006, dois estudos prestigiosos sobre as gorduras ômega-3 publicados ao mesmo tempo chegaram a conclusões espantosamente diferentes. Enquanto o Instituto de Medicina da Academia Nacional de Ciências encontrou poucas provas conclusivas de que comer peixe fizesse muito bem ao coração (e pode fazer mal ao cérebro, porque muitos peixes estão contaminados com mercúrio), um estudo de Harvard trouxe a notícia promissora de que comer algumas porções de peixe por semana (ou tomar uma quantidade suficiente de comprimidos de óleo de peixe) pode diminuir em mais de um terço o risco de se morrer de ataque cardíaco. Não espanta que os ácidos graxos ômega-3 estejam preparados para se tornar o farelo de aveia de nossa época enquanto os cientistas da alimentação correm para elaborar microcápsulas de óleo de peixe e algas para injetá-las em alimentos antes totalmente terrestres, como pães e massas, leite, iogurtes e queijos, os quais, muito em breve, podem ter certeza, ostentarão novas alegações suspeitas quanto a benefícios para a saúde. (Espero que você se lembre da regra que está sendo discutida.)
A essa altura você deve estar sentindo a dissonância cognitiva do comprador de supermercado ou leitor de seções de ciência,bem como alguma nostalgia da simplicidade e da consistência das primeiras palavras deste livro. Palavras que continuo preparado para defender contra os ventos instáveis da ciência nutricional e do marketing da indústria da alimentação, e defenderei. Mas, antes de fazê-lo, é importante entender como chegamos ao nosso atual estado de confusão e ansiedade nutricional. Esse é o tema da primeira parte desse livro — “A era do nutricionismo”.
A história de como as questões mais básicas sobre o que comer se complicaram revela muito sobre os imperativos institucionais da indústria alimentícia, da ciência da nutrição e — hum! — do jornalismo, três grupos em posição de ganhar muito com a confusão generalizada em torno da pergunta mais elementar com que um onívoro se defronta. Humanos decidindo o que comer sem orientação profissional — coisa que vêm fazendo com extraordinário sucesso desde que desceram das árvores — é algo pouquíssimo lucrativo para uma empresa do ramo de alimentação, fracasso profissional certo para um nutricionista e simplesmente um tédio para um redator ou repórter de jornal. (Ou, no caso, para os que vão comer. Quem quer ouvir, mais uma vez, que se deve “comer mais frutas e hortaliças”?) Então, como uma imensa nuvem negra, formou-se uma grande Conspiração da Complexidade Científica em torno das questões mais simples da nutrição — em proveito de todos os envolvidos. Com exceção talvez do pretenso beneficiário de todos esses conselhos nutricionais: nós, nossa saúde e nossa felicidade em face da alimentação. Pois o mais importante a saber em relação à campanha para profissionalizar as recomendações alimentares é que elas não nos tornaram mais saudáveis. Ao contrário: como defendo na primeira parte, a maioria dos conselhos nutricionais que recebemos ao longo dos últimos cinqüenta anos (e em particular o conselho de substituir as gorduras em nossa dieta por carboidratos) na verdade nos tornou menos saudáveis e consideravelmente mais gordos.
Minha luta aqui é em prol da saúde e da felicidade diante do que comemos. Fazer isso requer um exercício que, à primeira vista, pode parecer supérfluo, se não absurdo: oferecer uma defesa da comida e da alimentação. O fato de a comida e a alimentação necessitarem de defesa pode parecer incoerente numa época em que a “super-nutrição” surge como uma ameaça mais séria à saúde pública do que a subnutrição. Mas afirmo que praticamente tudo o que consumimos hoje não é mais, em sentido estrito, comida, e a forma como estamos consumindo essas coisas — no carro, na frente da tevê e, cada vez mais, sozinhos — não é realmente comer, pelo menos no sentido em que a civilização entende o termo. Jean Anthelme Brillat-Savarin, gastrônomo do século XVIII, fez uma útil distinção entre a atividade alimentar dos animais, que “se alimentam”, e a dos seres humanos, que comem, ou fazem refeições, uma prática, sugeriu ele, que se deve tanto à cultura quanto à biologia.
Mas, se comida e alimentação estão em posição de necessitar de defesa, de quem ou de que precisam se defender? Da ciência da nutrição, de um lado, e da indústria alimentícia, do outro — e das complicações inúteis que ambas criaram em torno da alimentação. Para comer estamos cada vez mais nas garras de um Complexo Nutricional Industrial — que compreende cientistas e marqueteiros da alimentação bem-intencionados, ainda que propensos a errar, ansiosos para explorar cada mudança no consenso nutricional. Juntos, e com alguma ajuda crucial do governo, eles construíram uma ideologia de nutricionismo que, entre outras coisas, convenceu a maioria de nós de três mitos perniciosos: 1) o mais importante não é o alimento, mas sim o “nutriente”; 2) por ser este invisível e incompreensível para todo mundo, menos para os cientistas, precisamos da ajuda de especialistas para decidir o que comer; 3) o objetivo da alimentação é promover um conceito estrito de saúde física. Uma vez que, por essa ótica, o alimento é, em primeiro lugar, uma questão de biologia, precisamos comer “cientificamente” — pelo nutriente e pelo número e sob a orientação de especialistas.
Se essa maneira de encarar o alimento não lhe parece pelo menos um pouquinho estranha, deve ser porque o raciocínio nutricionista se tornou tão onipresente que ficou invisível. Esquecemos que, historicamente, as pessoas comem por muitas razões além da necessidade biológica. Comida também tem a ver com prazer, comunidade, família e espiritualidade, com a nossa relação com o mundo natural e com a expressão da nossa identidade.
Já que os seres humanos fazem refeições juntos, a alimentação tem relação tanto com a cultura quanto com a biologia.
A idéia de que alimentação deveria, em primeiro lugar, ter a ver com a saúde do corpo é relativamente nova e, penso, destrutiva — destrói não só o prazer de comer, o que seria bastante ruim, mas, de modo paradoxal, também nossa saúde. De fato, não há no mundo povo mais preocupado com a saúde e as consequências para a saúde de suas escolhas alimentares do que nós, americanos — e não há povo que tenha tantos problemas de saúde relacionados com a dieta. Estamos nos tornando uma nação de ortoréxicos: pessoas com uma obsessão doentia por uma alimentação saudável.*
[* Ortorexia – do grego orto (direito e correto) + orexe (apetite) + ia = apetite correto. O termo foi proposto pelo médico americano Steven Bratman. Embora a ortorexia ainda não seja uma disfunção alimentar reconhecida pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, está em curso uma investigação acadêmica.]
Os cientistas ainda não testaram a hipótese, mas estou disposto a apostar que quando o fizerem encontrarão uma correlação inversa entre a quantidade de tempo que as pessoas gastam se preocupando com nutrição e sua saúde e felicidade geral. Essa é, afinal, a lição implícita do paradoxo francês, assim chamado não pelos franceses (Quel paradoxe?), mas por nutricionistas americanos que não conseguem compreender como um povo que curte tanto sua comida como os franceses, e come com despreocupação tantos nutrientes tachados de impróprios por nutricionistas, poderia ter índices bem mais baixos de doenças cardíacas do que temos com nossas dietas com pouca gordura minuciosamente concebidas. Talvez seja hora de encarar o paradoxo americano: uma população notadamente doentia preocupada com nutrição e dieta e com a ideia de se alimentar de maneira saudável.
Não tenho a intenção de sugerir que todos estaríamos bem se parássemos de nos preocupar com comida ou com o estado de nossa saúde alimentar: Deixe que eles comam Twinkies! Há, de fato, algumas boas razões para se preocupar. O surgimento do nutricionismo reflete preocupações legítimas de que a dieta americana, que está quase se tornando a dieta mundial, se transformou de maneira a nos deixar cada vez mais doentes e gordos. Quatro das dez principais causas de morte hoje são doenças crônicas ligadas à dieta: doenças coronarianas, diabetes, AVC e câncer. É certo que a ascensão da incidência dessas doenças crônicas se deve, em parte, mas só em parte, ao fato de não estarmos morrendo antes de doenças infecciosas: mesmo dando o desconto da idade, muitas das chamadas doenças da civilização eram muito menos comuns há um século — e continuam raras em lugares onde as pessoas não comem da forma como comemos.
Estou falando, é claro, do óbvio que ninguém quer ver sempre que discutimos dieta e saúde: a “dieta ocidental”. Este é o tema da segunda parte do livro, em que sigo a história da mudança mais radical na forma como os seres humanos se alimentam desde a descoberta da agricultura. Todas as nossas incertezas sobre nutrição não deveriam esconder o simples fato de que as doenças crônicas que agora matam a maioria de nós começaram com a industrialização de nossa comida: com o surgimento de alimentos altamente processados e grãos altamente refinados; o uso de produtos químicos para cultivar plantas e criar animais em enormes monoculturas; a superabundância de calorias baratas provenientes de açúcar e gordura produzidos pela agricultura moderna e a redução da diversidade biológica da dieta humana a alguns alimentos básicos, notadamente trigo, milho e soja. Essas mudanças nos deram a dieta ocidental que achamos natural: montes de alimentos e carne processados, montes de gordura e açúcar adicionados, montes de tudo — exceto hortaliças, frutas e grãos integrais.
Já sabemos há muito tempo que uma dieta dessas deixa as pessoas doentes e gordas. No início do século XX, um intrépido grupo de médicos e profissionais da saúde lotados do outro lado do Atlântico observou que em qualquer lugar onde se abrisse mão da alimentação tradicional em prol da dieta ocidental logo aparecia uma série previsível de doenças ocidentais, incluindo obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e câncer. Esses observadores chamaram tais distúrbios de doenças ocidentais, e embora os mecanismos causais precisos fossem (e continuem) incertos, não tinham dúvidas de que essas doenças crônicas apresentavam uma etiologia comum: a dieta ocidental.
Ademais, as dietas tradicionais que os novos alimentos ocidentais desalojaram eram muito diferentes: várias populações mantinham dietas que chamaríamos de muito gordurosas, pouco gordurosas ou com excesso de carboidrato, compostas só de carnes ou só de vegetais; de fato, já houve dietas tradicionais baseadas em quase qualquer tipo de alimento puro que se possa imaginar. O que isso sugere é que o animal humano está bem adaptado a muitas dietas diferentes. A dieta ocidental, porém, não é uma delas.
Eis então um fato simples mas crucial sobre dieta e saúde,porém, curiosamente, um fato que o nutricionismo não enxerga, provavelmente porque tenha se desenvolvido com a industrialização de nossa comida e, assim, a considere natural. O nutricionismo prefere ficar mexendo na dieta ocidental, ajustando os vários nutrientes (diminuindo a gordura, aumentando as proteínas) e enriquecendo alimentos processados a, antes de tudo, questionar seu valor. O nutricionismo é, em certo sentido, a ideologia oficial da dieta ocidental e, assim, não se pode esperar que vá questioná-la de forma efetiva.
Mas nós podemos. Inteirando-nos mais sobre a natureza da dieta ocidental — tentando entendê-la não só filosófica mas também histórica e ecologicamente — podemos começar a desenvolver um modo diferente de pensar sobre o alimento que talvez aponte um caminho para sairmos de nossa enrascada. Ao fazer isso, temos dois fatos substanciais e muito encorajadores para nos guiar: primeiro, que os seres humanos, historicamente, têm sido saudáveis com muitas dietas diferentes; e, segundo, que, como será visto, a maioria das mudanças em nossos alimentos e em nossa saúde causadas pela industrialização da alimentação pode ser revertida. Em termos simples, podemos fugir da dieta ocidental e suas consequências.
Esta é a responsabilidade da terceira e última parte de Em defesa da comida: propor algumas dezenas de regras pessoais de alimentação que conduzam não só a uma saúde melhor mas também a um prazer maior de comer, dois objetivos que acabam se reforçando mutuamente.
Essas recomendações são um pouco diferentes das diretrizes nutricionais a que você deve estar acostumado. Não são, por exemplo, estritamente prescritivas. Quem sou eu — quem é qualquer um? — para dizer o que comer no jantar? Não, essas sugestões são mais como algoritmos alimentícios, instrumentos mentais para pensar por intermédio de nossas escolhas alimentícias. Não havendo uma resposta única à pergunta “O que comer?”, tais diretrizes produzirão tantos cardápios diferentes quantas forem as pessoas que as estiverem usando.
Essas regras práticas também não são formuladas no jargão da ciência da nutrição. Não porque a ciência da nutrição não tenha nada de importante a nos ensinar — ela tem, pelo menos quando evita as armadilhas do reducionismo e do excesso de confiança —, mas porque acho que temos muito, se não mais, a aprender sobre alimentação com a história, a cultura e a tradição. Estamos acostumados, em todas as questões ligadas à saúde, a presumir que a ciência deve ter a última palavra, mas no caso da alimentação outras fontes de conhecimento e formas de saber podem ser igualmente poderosas, às vezes até mais. E embora eu, inevitavelmente, confie na ciência (até na ciência reducionista), ao tentar entender muitas questões sobre saúde e alimentação, um de meus objetivos neste livro é mostrar as limitações de uma compreensão estritamente científica de algo tão ricamente complexo e multifacetado como o alimento. A ciência tem muito de valioso a nos ensinar sobre comida, e talvez algum dia os cientistas “solucionem” o problema da dieta, criando a refeição nutricionalmente ideal em uma pílula, mas, por ora, e pelo futuro previsível, deixar os cientistas decidirem o cardápio seria um erro. Eles não sabem o suficiente.
Você pode muito bem, e com razão, se perguntar quem sou eu para lhe dizer como comer. Cá estou eu recomendando-o a rejeitar o conselho da ciência e da indústria — e aí vou em frente alegremente oferecendo minhas próprias indicações. Então, o que me autoriza a ter a pretensão de falar? Falo, sobretudo, em nome da tradição e do bom senso. Já sabemos quase tudo que precisamos saber sobre como comer, ou soubemos até permitir que os especialistas da nutrição e os anunciantes abalassem nossa confiança no bom senso, na tradição, no testemunho de nossos sentidos e na sabedoria de nossas mães e avós.
Não que tivéssemos muita escolha quanto a isso. Na década de 1960 tornou-se quase impossível manter formas tradicionais de alimentação em face da industrialização de nossos alimentos. Se quisesse comer hortifrutigranjeiros cultivados sem produtos químicos sintéticos ou carne de gado criado no pasto sem produtos farmacêuticos, não seria possível. O supermercado tornou-se o único lugar para comprar comida, e a comida de verdade sumia depressa de suas prateleiras, para ser substituída pela moderna cornucópia de produtos extremamente processados com aspecto de comida. E porque tantas dessas novidades mentiam aos nossos sentidos com adoçantes e aromas de imitação, não podíamos mais confiar no paladar nem no olfato para saber o que estávamos comendo.
A maioria de minhas sugestões se resume a estratégias para fugir da dieta ocidental, mas antes do ressurgimento dos mercados do produtor, do surgimento do movimento orgânico e do renascimento da agricultura local que agora está acontecendo nos Estados Unidos, sair do sistema da alimentação convencional simplesmente não era uma opção realista para a maioria das pessoas. Agora é. Estamos entrando numa era de alimentação pós-industrial; pela primeira vez em uma geração é possível deixar para trás a dieta ocidental sem ter também que deixar para trás a civilização. E quanto mais houver pessoas que votem com seus garfos por um tipo diferente de alimento, mais comum e acessível ele se tornará. Entre outras coisas, este livro é o manifesto de alguém que come, um convite para que você se una ao movimento que está renovando nosso sistema alimentício em nome da saúde — saúde no sentido mais amplo do termo.
Duvido que o último terço deste livro pudesse ter sido escrito há vinte anos, pelo menos porque não haveria maneira de comer da forma como proponho sem voltar à terra e ao cultivo de todos os alimentos. Seria o manifesto de um insensato. Só havia de fato um tipo de comida no cardápio nacional, presente em tudo que a indústria e o nutricionismo estivessem servindo. Não é mais assim. Quem come, agora, tem opções reais, e essas opções têm consequências reais para nossa saúde, para a saúde da terra e para a saúde de nossa cultura alimentar — todas, como será visto, inextricavelmente ligadas. O fato de alguém precisar escrever um livro aconselhando as pessoas a “comer comida” pode ser encarado como uma medida de nossa alienação e confusão. Ou podemos escolher ver isso sob um prisma mais positivo e nos considerar felizes por haver mais uma vez comida de verdade para comermos.
- A era do nutricionismo - Dos alimentos aos nutrientes
Não, as prateleiras e as geladeiras ainda estavam sobrecarregadas com pacotes, caixas e sacos de vários comestíveis, que na verdade eram mais a cada ano, mas muitos dos alimentos tradicionais de supermercado estavam sendo substituídos por “nutrientes”, que não são a mesma coisa. Onde antes os nomes familiares de comestíveis reconhecíveis — coisas como ovos, cereais matinais ou salgadinhos — sustentavam a posição mais importante nos pacotes coloridos que abarrotavam os corredores, termos novos de ressonância científica como “colesterol”, “fibra” e “gordura saturada” começaram a vir estampados em destaque. Mais importante do que simples alimentos, achava-se que a presença ou a ausência dessas substâncias invisíveis conferia benefícios à saúde de quem os consumia. A mensagem implícita era que os alimentos, em comparação, eram itens toscos, antiquados e, sem sombra de dúvida, não científicos — quem era capaz de dizer o que continham? Mas os nutrientes — aqueles compostos químicos e sais minerais nos alimentos que os cientistas identificavam como importantes para a nossa saúde — reluziam com a promessa da certeza científica.
Coma mais dos certos, menos dos errados e viverá mais, evitará doenças crônicas e emagrecerá.
O conceito de nutriente existe desde o início do século XIX.
Foi quando William Prout, médico e químico inglês, identificou os três principais componentes dos alimentos — proteínas, gorduras e carboidratos —, que ficariam conhecidos como macronutrientes. Consolidando a descoberta de Prout, Justus von Liebig, grande cientista alemão considerado um dos fundadores da química orgânica, acrescentou alguns minerais à grande árvore e declarou que o mistério da nutrição animal — como o alimento se transforma em carne e energia — havia sido solucionado. Trata-se do mesmo Liebig que identificou os macronutrientes do solo — nitrogênio, fósforo e potássio (conhecidos dos fazendeiros e dos jardineiros pelos símbolos da tabela periódica: N, P, K). Liebig afirmou que tudo de que as plantas precisam para viver e crescer são esses três elementos, e só. Assim como as plantas, as pessoas: em 1842, Liebig propôs uma teoria do metabolismo que explicava a vida estritamente em termos de um pequeno punhado de nutrientes, sem recurso a forças metafísicas tais como o “vitalismo”.
Desvendado o mistério da nutrição humana, Liebig em seguida desenvolveu um extrato de carne — o Extratum Carnis de Liebig —, que veio a ser um caldo de carne, e elaborou a primeira fórmula de alimento para bebês, que consistia em leite de vaca, farinha de trigo, farinha maltada e bicarbonato de potássio.
Liebig, o pai da ciência nutricional moderna, acuou os alimentos e forçou-os a revelar seus segredos químicos. Mas o consenso pós-Liebig de que a ciência de então sabia muito bem o que estava acontecendo nos alimentos não durou muito. Os médicos começaram a notar que muitos dos bebês alimentados exclusivamente com o leite de Liebig não se desenvolviam bem. (Não é de surpreender, já que faltavam em sua fórmula todas as vitaminas e vários aminoácidos e gorduras essenciais.) Os médicos que constataram a frequência com que os marinheiros adoeciam nas longas viagens oceânicas, mesmo quando recebiam suprimentos adequados de proteínas, carboidratos e gordura, começaram a achar que Liebig talvez tivesse deixado de ver algumas coisinhas nos alimentos.
Os químicos claramente estavam passando por cima de alguma coisa — alguns ingredientes presentes nos vegetais frescos (como laranjas e batatas) que milagrosamente curavam os marinheiros.
Essa observação levou à descoberta, no início do século XX, do primeiro conjunto de micronutrientes, que o bioquímico polonês Casimir Funk, retomando ideias vitalistas mais antigas, batizou de “vitaminas”, em 1912 (“vita”, vida, e “aminas”, compostos orgânicos organizados em torno do nitrogênio).
As vitaminas deram grande contribuição ao prestígio da ciência nutricional. Essas moléculas especiais, que primeiro foram isoladas dos alimentos e mais tarde sintetizadas em laboratório, podiam curar deficiências nutricionais como escorbuto e beribéri quase da noite para o dia, numa demonstração convincente do poder redutivo da química. A partir da década de 1920 as vitaminas viraram moda para a classe média, um grupo que não é notadamente afetado pelo beribéri nem pelo escorbuto. Mas passou-se a acreditar que tais moléculas mágicas também promoviam o crescimento das crianças, uma vida longa para os adultos e, numa expressão da época, “saúde positiva” para todos. (E o que seria exatamente “saúde negativa”?) As vitaminas trouxeram uma espécie de glamour para a ciência da nutrição, e embora determinados segmentos da elite então começassem a comer segundo o ponto de vista dos especialistas em vitaminas, só de fato no fim do século XX os nutrientes passaram a substituir a comida na visão popular do que significa comer.
Não houve um acontecimento isolado marcando a passagem da ideia de se comer comida para a de se comer nutrientes, embora, considerando o passado, uma briga política pouco notada em Washington em 1977 pareça ter ajudado a empurrar a cultura americana por essa trilha infeliz e mal iluminada. Reagindo a relatórios de um alarmante aumento de doenças crônicas ligadas à dieta — incluindo doenças do coração, câncer, obesidade e diabetes — a Comissão Superior do Senado para Nutrição e Necessidades Humanas, presidida pelo senador George McGovern, de Dakota do Sul, realizou sessões sobre o problema. A comissão fora formada em 1968 com a missão de eliminar a desnutrição, e seu trabalho levara à criação de vários importantes programas de assistência alimentar. Partir agora para resolver a questão da dieta e das doenças crônicas na população em geral era uma certa extrapolação de objetivos, mas tudo em nome de uma boa causa, à qual ninguém poderia fazer objeção.
Após ouvir dois dias de depoimentos sobre dieta e doenças fatais, a comissão — composta não de cientistas ou médicos mas sim de advogados e (hum!) jornalistas — começou a preparar o que tinha todas as razões para presumir que seria um documento incontrovertido, o chamado Metas alimentares para os Estados Unidos [Dietary Goals]. A comissão ficou sabendo que enquanto as taxas de doença coronariana haviam subido vertiginosamente nos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Mundial, certas outras culturas que consumiam dietas tradicionais baseadas principalmente em vegetais apresentavam baixíssimos índices de doenças crônicas. Os epidemiologistas também observaram que durante os anos de guerra, quando a carne e os laticínios eram estritamente racionados, o índice de doenças do coração despencou temporariamente, para subir novamente depois que a guerra acabou.
A partir da década de 1950 difundiu-se cada vez mais nos meios científicos a opinião de que o consumo de gordura e colesterol alimentar, oriundos em grande parte da carne e dos laticínios, era responsável pelo aumento da ocorrência das doenças do coração no século XX. A “hipótese lipídica”, como foi chamada, já havia sido adotada pela Associação Americana do Coração, que em 1961 passara a recomendar uma “dieta prudente” pobre em gorduras saturadas e colesterol oriundos de produtos de origem animal. É verdade, a prova propriamente dita da hipótese lipídica era fraquíssima em 1977 — continuava no nível da hipótese, mas uma hipótese prestes a obter aceitação geral.
Em janeiro de 1977 a comissão publicou um conjunto de diretrizes dietéticas bastante diretas, convocando os americanos a cortar o consumo de carne vermelha e laticínios. Em semanas, uma explosão de críticas, emanadas principalmente das indústrias de carne e de laticínios, engoliu a comissão, e o senador McGovern que tinha muitos pecuaristas entre os seus eleitores de Dakota do Sul) foi forçado a bater em retirada. As recomendações da comissão foram reescritas às pressas. A conversa clara sobre alimentos propriamente ditos — a comissão aconselhara os americanos a “reduzir o consumo de carne” — foi substituída por um meio termo engenhoso: “Escolha carnes, aves e peixes que reduzam o consumo de gorduras saturadas.”
Desconsidere por ora as virtudes porventura existentes de uma dieta com pouca carne e/ou pouca gordura, questões às quais voltarei, e concentre-se um instante na linguagem. Pois com essas mudanças súbitas de formulação toda uma maneira de pensar sobre comida e saúde sofreu uma tremenda transformação. Primeiro, repare que a mensagem categórica “coma menos” de um alimento em particular — nesse caso carne — fora deixada de lado; não a procure em nenhum pronunciamento oficial do governo dos Estados Unidos sobre alimentação. Você pode dizer o que quiser sobre este ou aquele alimento, mas não está autorizado oficialmente a mandar as pessoas comerem menos deles ou a indústria em questão vai fazer você em pedacinhos. Mas há um caminho para contornar esse obstáculo inamovível, e foram os assessores de McGovern que o divulgaram: Não fale mais de alimentos, só de nutrientes. Repare como, nas diretrizes revistas, distinções entre entidades tão diferentes quanto carne de vaca, frango e peixe desapareceram. Esses três veneráveis alimentos, cada qual representando não apenas uma espécie diferente, mas também uma classe taxonômica inteiramente diversa, agora estavam reunidos como meros sistemas de fornecimento de um único nutriente. Repare também como a nova linguagem isenta os próprios alimentos.
Agora o culpado é uma substância obscura, invisível, sem sabor — e sem ligações políticas —, que pode ou não se esconder nas chamadas gorduras saturadas.
A capitulação linguística não redimiu McGovern de seu erro.
Na eleição seguinte, em 1980, o lobby da carne conseguiu impedir que o senador conquistasse o quarto mandato, enviando um aviso inconfundível a quem quer que desafiasse a dieta americana, e, em particular, o naco de proteína animal chapado no meio de seu prato. Desde então, as diretrizes alimentares do governo americano evitariam usar linguagem clara sobre alimentos básicos, cada um dos quais tem sua associação do ramo no Capitólio, e viriam disfarçadas de eufemismos científicos e falando de nutrientes, entidades que poucos americanos (incluindo, como iremos descobrir, cientistas da nutrição) entendiam realmente, mas que, com a notável exceção da sacarose, carecem de lobbies poderosos em Washington.*
A lição do fiasco McGovern foi rapidamente absorvida por todos os que se pronunciariam sobre a dieta americana. Quando a Academia Nacional de Ciências, alguns anos depois, examinou a questão dieta e câncer, teve o cuidado de formular suas recomendações nutriente por nutriente em vez de alimento por alimento, para evitar ofender interesses poderosos. Agora sabemos que a comissão de 13 cientistas da academia adotou esse enfoque passando por cima das objeções de pelo menos dois de seus membros, que afirmavam que a maioria dos dados científicos disponíveis apontava para conclusões sobre alimentos, não sobre nutrientes.
Segundo T. Colin Campbell, bioquímico nutricional de Cornell que participou da comissão, todos os estudos da população humana ligando a gordura alimentar ao câncer na verdade mostravam que os grupos em que havia maior incidência de câncer consumiam não só mais gorduras, mas também mais alimentos de origem animal e menos de origem vegetal. “Isso significava que esses cânceres poderiam muito bem ser causados por proteína animal, colesterol alimentar, outro elemento encontrado exclusivamente em alimentos baseados em produtos de origem animal ou por [* A sacarose é a exceção que comprova a regra. Só o poder do lobby do açúcar em Washington pode explicar o fato de que as recomendações oficiais dos Estados Unidos para o nível máximo permitido de açúcares livres na dieta sejam surpreendentemente 25% das calorias diárias. Para uma ideia de como isso é permissivo, a Organização Mundial da Saúde recomenda que não mais de 10% das calorias diárias venham de açúcares suplementares, uma referência que o lobby americano do açúcar trabalha furiosamente para derrubar. Em 2004, apelou para o Departamento de Estado do governo Bush numa campanha para modificar a recomendação e ameaçou fazer lobby no Congresso para cortar subsídios à OMS se esta não se retratasse. Talvez devêssemos levantar as mãos para o céu pelo fato de os interesses das gorduras saturadas ainda não terem organizado um lobby desse tipo.] uma carência de alimentos de origem vegetal”, disse Campbell anos mais tarde. O argumento encontrou ouvidos surdos.
Da mesma forma, no caso dos “bons alimentos”, os nutrientes também prevaleciam: a linguagem do relatório final ressaltava os benefícios dos antioxidantes nos vegetais e não dos próprios vegetais. Joan Gussow, nutricionista da Universidade de Columbia que participou da comissão, condenou o foco nos nutrientes em vez de nos alimentos. “A mensagem realmente importante na epidemiologia, que é tudo o que tínhamos para prosseguir, era que algumas hortaliças e cítricos pareciam proteger contra o câncer.
Mas essas seções do relatório foram redigidas como se fossem a vitamina C nos cítricos ou o betacaroteno nas hortaliças os responsáveis pelo efeito. Continuei mudando de discurso para falar sobre ‘alimentos que contêm vitamina C’ e ‘alimentos que contêm carotenoides’. Porque, como é possível discernir entre os componentes da cenoura ou do brócolis? Há centenas de carotenoides. Mas os bioquímicos tiveram sua resposta: ‘Não dá para fazer um teste com base em brócolis.’”
Então os nutrientes ganharam dos alimentos. O recurso da comissão ao reducionismo científico teve a grande virtude de ser politicamente conveniente (no caso da carne e dos laticínios) e, para esses herdeiros científicos de Justus von Liebig, intelectualmente simpático. Com cada um de seus capítulos focado num único nutriente, o esboço final de Diet, Nutrition and Cancer formulava suas recomendações em termos de gorduras saturadas e antioxidantes em vez de carne e brócolis.
Ao fazer isso, o relatório de 1982 da Academia Nacional de Ciências ajudou a codificar a nova língua alimentar oficial, a que todos ainda falamos. A indústria e a mídia logo seguiram o exemplo, e termos como poliinsaturado, colesterol, monoinsaturado, carboidrato, fibra, polifenóis, aminoácidos, flavonóis, carotenóides, antioxidantes, probióticos e fitoquímicos logo colonizaram grande parte do espaço cultural previamente ocupado pelo material tangível antes conhecido como comida. Foi o início da Era do Nutricionismo.