A infância e a juventude foram eventos que passaram rápido. Foram marcadas por doenças, fome, miséria, desamparo, solidão, batalhas, vitórias e derrotas.
E principalmente para a formação do meu caráter. Foram fases vivenciadas de maneira intensa e deixaram suas nódoas. Boas e más. Significativas e repugnantes. Imemoriais e indeléveis.
Depois de passarmos um período muito longo de nossas vidas ao lado de uma pessoa, dormindo com ela, conversando diariamente, vivenciando problemas pessoais ao seu lado, relacionando-se sexualmente, conhecendo em profundidade seus temores, anseios, desejos, manias e temperamento, podemos dizer que fazemos parte dela. E ela de nós.
Mercedes. Rosso. Duas vidas. Um mesmo destino.
Conheci Mercedes quando estávamos na casa dos vinte poucos anos de idade. Na época, recentemente formado em engenharia civil, consegui um bom emprego numa grande construtora. Ela era pedagoga. Como era gostoso deixar o trabalho, ir para casa, tomar um banho quente, perfumar o corpo, vestir uma roupa limpa e ir namorá-la na varanda de sua casa. Apesar de adultos, gostávamos do tradicional. Quando comecei a namorá-la, como um jovem meio desajeitado, pedi autorização para namorá-la e frequentar sua casa. Aquele que se tornaria meu sogro achou estranha a minha atitude formal, quando os jovens não costumavam agir desta maneira e quando menos se esperava estavam se agarrando no sofá da sala e sendo repreendidos. Não senti nenhum constrangimento ou insegurança durante o pedido, porque fazia o que meu coração e consciência clamavam. E passamos a namorar nas cadeiras da varanda. No verão era uma delícia. A brisa noturna tornava nossos carinhos e beijos mais doces, mais ardorosos. Às vezes tínhamos a companhia de meus sogros que traziam um prato de salgadinhos com suco de fruta. Era o momento de ficarmos comportados. Mercedes falava da escola em que trabalhava e eu das dificuldades que encontrava na construtora.
Quando chegava o inverno, éramos convidados a gozar do aconchego do sofá da sala de visitas e ficávamos apenas no bate-papo, sob o olhar atento de meu sogro ou de minha sogra, que se revezavam na vigília. Quando a vontade apertava, saíamos para passear e acabávamos nos esparramando num motel. Mercedes adorava. Então ela revelava a outra face do imenso amor que tinha por mim. Em algumas oportunidades passamos tardes inteiras fazendo amor no motel. Era gostoso, maravilhoso. Ardemos em paixão por dois anos e nos casamos. Três meses depois tivemos que deixar Belo Horizonte, por imposição profissional, e fomos residir no Rio Grande do Sul. A construtora em que eu trabalhava vencera uma concorrência e uma equipe foi deslocada para trabalhar na nova empreitada.
Parecíamos circenses ou ciganos. Passamos a ter uma vida nômade. Não fixávamos residência permanente em lugar algum. Eu construía prédios, conjuntos habitacionais, escolas, indústrias e fábricas. Ela lecionava em escolas, formando crianças e jovens. No fim do dia, nossos corpos cansados se encontravam, primeiramente, no interior de nossa pequena e adorável casa. Ali conversávamos sobre o trabalho, despesas do lar, problemas familiares. Amávamo-nos e brigávamos como todo casal. Mercedes tinha um temperamento forte e eu custei um pouco para entender sua maneira de pensar e seu estilo de viver. Realmente para conhecermos uma pessoa precisamos vivenciar dificuldades e alegrias ao seu lado, para que efetivamente saibamos sua maneira de pensar e agir. Ela dizia que gostava muito de cuidar da casa, que deseja ter mais tempo para cuidá-la, deixá-la limpa e arrumada. Depois nos aconchegávamos na maciez de nossa cama e gozávamos dos prazeres do sexo.
Mercedes sempre teve um corpo desejável e isso apimentava nossas relações amorosas.
Nossa vida criou sua própria rotina. Em cada cidade em que morávamos eu vivenciava os problemas na construtora e ela, as dificuldades nas escolas em que trabalhava. Até que nasceu nosso primeiro filho e com ele passaram a me surgir dores nas costas. Ficamos muito felizes, principalmente eu, que desejava ser pai. Vivia a paparicar meu filhote. Mercedes abandonou o trabalho e não mais voltou. Ela sempre disse que desejava cuidar da casa e dos filhos e que não gostaria de voltar a trabalhar, porque achava importante a presença e acompanhamento da mãe na educação e formação dos filhos. Concordei, em vista que mesmo com um filho, meu salário permitia um orçamento familiar confortável. Depois da gravidez ela não perdeu todos os quilos que adquirira e passou a constantemente fazer dietas, como toda mulher. Coisa da vaidade feminina. Eu nunca pedi para que emagrecesse e dizia que meu desejo por ela não mudara, mas ela não acreditava. Sua libido diminuiu, pelo fato de se achar gorda. Ela não me procurava para o sexo como antes, mas não recusava quando eu a seduzia. Eu a procurava sempre que podia, sempre que percebia que ela não estava cansada pelos afazeres do lar e pela atenção e cuidados exigidos pelo bebê. As dores nas minhas costas, mas precisamente na região lombar, foram aumentando.
Lucas foi crescendo. Doenças infantis. Gripes, resfriados e pneumonia. Ele foi internado duas vezes, entre os dez meses de vida e os três anos de idade, quando Mercedes engravidou novamente. Nove meses depois nasceu Valentina. Ela era um lindo bebê. Como Lucas, exigiu muita atenção devido às doenças que contraiu.
Mercedes gostava de arrumá-la como uma boneca, com vestidos bonitos e laços coloridos. Surgiu o ciúme de Lucas em relação à irmã. Eles brigavam e nós apaziguávamos. A dupla dinâmica desejava a minha atenção todos os dias, tanto no lazer como nos estudos. No fim da noite eu estava exausto e recolhia-me com Mercedes para o quarto. Depois de uma boa conversa, avançava sobre ela e nos deleitávamos no sexo, mas o sexo não era mais o mesmo. Diante do espelho do banheiro percebi que envelhecia, que talvez não satisfizesse mais minha mulher como antes. Mas ela me realizava como homem. Totalmente.
Invernos passaram. As doenças dos filhos foram desaparecendo. E surgiram outras em Mercedes e em mim. Colesterol elevado, gastrite, insônia, inapetência, tensão nervosa, ansiedade.
Lucas tomou formas de um homem. Forte e atraente. Valentina seguiu-o, ficando bela e formosa como Mercedes. Lucas foi aprovado no vestibular. Alegria e comemoração. Teríamos um advogado em casa. Valentina participou da alegria do irmão, mas sua oculta inveja foi percebida por mim, talvez por achar que eu gostasse mais dele. Puro engano. Os pais não gostam mais de um filho do que do outro. Seu amor e predileção são determinados por aquilo que os filhos são independentemente de terem o mesmo sangue. Se forem bons filhos, terão sua afetividade e orgulhos. Caso contrário, serão vistos como motivo de decepção e desgosto.
Verões passaram. A poupança que fazíamos demonstrava que conseguiríamos comprar a casa própria. Eu estava feliz. Lucas formou-se. Valentina se preparava para o vestibular. Mercedes contabilizava os cabelos brancos que surgiam.
Apenas nela, esquecendo-se de mim. Eu abandonara a vaidade devido às constantes dores lombares que me levaram a internações recorrentes. Numa delas, o ortopedista informou-me que eu tinha uma hérnia de disco. Esta era a razão de tantas dores. Muitos analgésicos e voltei a trabalhar.
Depois de passarmos um período muito longo de nossas vidas ao lado de uma pessoa, trabalhando, almoçando, viajando, achamos que a conhecemos, em profundidade. Puro engano. Jamais se sabe o que realmente se passa no coração e na mente de nosso semelhante. Após muitos nãos descobri que tinha um oculto rival na construtora. Talvez fosse meu inimigo pelo fato de ter casado com uma mulher notoriamente feia, por não obter na oportunidade as promoções que eu conquistei e por achar-se menos inteligente do que eu. Eu desconhecia o verdadeiro motivo de sua inveja, mas ela existia e era veemente. Criminosa. A inveja é o maior dos males da natureza humana. Numa tarde, durante uma visita de inspeção ao canteiro de obras, o inimigo oculto preparou uma cilada para mim, de modo que tudo parecesse um acidente de trabalho. Acabei por cair do alto de uma plataforma após pisar num conjunto de tábuas previamente soltas. Não imagino e não sei como ele foi capaz de montar a armadilha e articular a minha ida ao local. Caí sobre um amontoado de materiais e perdi os sentidos. Acordei no hospital, com Mercedes chorando ao lado do meu leito. Eu balbuciava. Indaguei o que aconteceu e ela disse que eu sofri um acidente. Não me lembrava de nada, nem como fui parar ali. O médico que me assistia disse que eu sofri uma lesão na coluna e que fui operado. Meus olhos marejaram e perguntei se voltaria a andar. Ele disse que tudo faziam para minha recuperação. Aquela frase ficou ecoando em minha mente: “... que tudo faziam para minha recuperação”. Fiquei meses afastado do trabalho.
Passei a andar com uma bengala. Fazia ações básicas com relativa dificuldade. Conseguia dirigir, caminhar e até nadar, mas não podia correr. O acidente impossibilitou-me totalmente de fazer aquilo que muito me agradava e eliminava o meu stress. E como eu gostava de correr. Adora a sensação do vento, da liberdade de percorrer os campos, as estradas e as ruas, com as minhas próprias pernas. A perda dessa sensação deixou uma vazio que jamais foi preenchida. A ação de correr deixou saudades. Profundas. Devido à limitação física, aposentaram-me precocemente. Meu oculto rival assumiu minha função.
Primaveras passaram. Compramos um sítio afastado da capital e para lá nos mudamos. Na oportunidade, Valentina foi aprovada no vestibular, permanecendo em Belo Horizonte. Lucas casou-se com uma bela jovem, não apenas pelo fato de estar apaixonado, mas por ela estar grávida. Meu primeiro neto nasceu prematuramente. Recebemos em nossa casa uma linda menina.
Cuidávamos do sítio com muito carinho. Pintamos as cercas de madeira de branco. Construímos um pomar. Compramos alguns animais domésticos para nos fazer companhia. Fui avô pela segunda vez. Valentina nos visitava periodicamente, quando a faculdade de engenharia permitia. Ela era muito dedicada aos estudos. Numa de suas visitas trouxe um rapaz e nos apresentou como seu namorado. Não tardou, minha “menina” telefonou de Belo Horizonte dizendo que esperava um bebê. Eles não casaram legalmente. Decidiram viver em pecado. Fui avô novamente, de gêmeos, uma menina e um menino.
Outonos passaram. Numa noite, Mercedes acordou-me. Ela gemia, alegando forte dor no abdômen. Fiquei extremamente preocupado. Embora sexagenária, minha doce mulher sempre apresentara saúde, vigor, além de visitar regularmente os médicos e sempre os resultados eram os melhores. Eu não, sempre que ia ao médico aparecia um problema. E vai receita aqui, remédio ali. Levei-a para o hospital. A estrada era mal iluminada e empoeirada, mas apesar dos meus quase setenta anos de idade, eu ainda enxergava bem. O médico de plantão depois de examiná-la deu-lhe um analgésico tão potente que Mercedes dormiu na maca da emergência. Ela acordou somente no fim da manhã. Eu estava sentado ao seu lado. Seus doces olhos marejaram. Ela perguntou o que havia acontecido e eu disse que estávamos no hospital e que ela estava bem.
Permanecemos alguns dias no hospital, realizando exames. Ela não desconfiou.
Voltamos para casa. Mercedes, de vez em quando, sorria para mim, e eu, ao volante, correspondia, carregando o segredo que ela não viveria por muito tempo.
Os animais percorriam o sítio. Mercedes sorria para mim. Namorávamos na varanda de casa. O segredo corroía minhas entranhas. Era pesado demais para mim.
Fazia-me acordar durante a madrugada e ficar contemplando minha amada enquanto dormia. Seria um golpe forte demais para mim. Silente, eu sofria, chorava escondidamente entre as árvores do pomar. Vivemos juntos mais de quarenta anos.
Ocultar da mulher que eu tanto amava que ela morreria em breve tornara-se algo angustiante. Telefonei para os nossos filhos. Eles vieram até o sítio. Pedi que Mercedes fizesse um lanche para nós e levei-os para o pomar. Revelei meu segredo. Meus queridos filhos derramaram lágrimas quando souberam que a mãe tinha um câncer em estágio avançado. Um tipo raro e praticamente incurável. Eles me abraçaram e choramos juntos. Minutos depois ouvimos Mercedes gritando para que voltássemos para a casa. Quando chegamos à cozinha, ela nos perguntou por que estávamos com os olhos vermelhos, e rindo, eu disse que fiz nossos filhos experimentarem os novos limões que brotaram no pomar. Ela disse que fui cruel com nossas “crianças”, por que os limoeiros deram uma safra azeda. Rimos e brincamos durante o lanche. Lucas se despediu da mãe na varanda com um forte abraço e, em particular, disse no carro que iriam descobrir uma solução. Valentina disse que fariam alguma coisa.
Minha família cresceu. Lucas e Valentina vinham com suas famílias nos visitar. Depois do almoço de domingo, sentávamos na varanda e ficávamos olhando meus netos correndo e brincando no jardim em frente à casa. Meus filhos enchiam a mãe de carinhos. Às vezes, ela dizia que eles estavam esquecendo o pai, que só faziam carinho nela. Eu dizia que não e sorria.
Era uma tarde ensolarada e fresca. O vento invadia a varada da casa e penetrava furtivamente no interior da casa. Minutos depois do almoço, Mercedes novamente passou mal e levei-a para o hospital. Mais analgésicos. Mais dias de internação. Ela acreditou no médico que disse ser uma forte infecção intestinal.
Voltamos para casa. Eu trabalhava no pomar e na manutenção do sítio. Ela cozinhava e tricotava roupinhas para os netos. Apresentava mais fragilidade nas ações. Uma palidez cobriu seu lindo rosto. Ficávamos abraçados, nas noites de lua cheia, sentados na varanda, contemplando o luar. Eu acariciava seus cabelos pintados por mim. Ela beijava meu pescoço corrugado.
O sol nascera radiante no horizonte. Deixei Mercedes dormindo na cama.
Assisti sentado na varanda de casa solitariamente a aquele espetáculo celeste. A manhã estava fria, mas depois foi esquentando na medida em que o sol se elevava no horizonte. Lucas, Valentina e suas famílias dormiam. Na noite anterior ficamos conversando e comendo doces e salgados com as crianças até tarde da noite. Mercedes era o foco de meus pensamentos, sempre fora. Para mim, ela continuava jovem como a conheci há muitos anos. Os invernos não desvaneceram a beleza que transcendia seu corpo encarquilhado como o meu. Eu a amava muito. Surgira uma dor emocional, intermitente em meu peito desde que soube da doença. Eu não estava preparado para a morte de minha mulher, para perda tão profunda e significativa em minha vida. A vida é constituída de perdas e danos, ganhos e lucros. Mas eu não estava preparado para esta perda. Nenhuma outra mulher ocuparia o lugar de Mercedes e eu não queria outra mulher em minha vida. Ela era a única e sempre seria. Não, decididamente não estava preparado para viver o resto de minha vida sozinho, criando meus filhos e meus netos.
Seria uma amargura que eu, embora amadurecido pelo tempo e pelas experiências da vida, não suportaria.
Depois do almoço de domingo, sentamos na varanda e ficamos olhando as crianças correndo e brincando no jardim na frente da casa, como de costume. Meus filhos enchiam a mãe de carinhos. Meses atrás, quando revelarem a doença à mãe, engajaram-se num tratamento dinâmico e incansável. Peregrinamos por centros radiológicos e hospitais. Até para os Estados Unidos da América eles levaram sua genitora. Valentina como dominava bem o inglês nos acompanhou. O tratamento foi breve e intenso. Gastamos quase todos os bens e valores que tínhamos. Retornamos com um estoque de medicamentos nas malas e lembranças para todos os netos. Os sintomas foram reduzidos pelos remédios de última geração, evidenciando uma melhora física e estimulando o desejo de viver em Mercedes, abalada com a notícia de possuir uma doença terminal. Eu disse a minha velha amada que a amaria por toda a eternidade. Ela sorriu e disse que a doença não importava desde que eu estivesse ao seu lado. O fim da tarde se aproximava. Entre risos e gargalhadas proporcionadas pelas anedotas contadas por Lucas e o marido de Valentina, Mercedes disse que estava com sede. Lucas esboçou ir até a cozinha apanhar um suco para a mãe e eu disse que não, que eu iria. Levantei me e fui apoiando-me na bengala. Quando abri a porta da geladeira, senti uma dor fulminante no peito. Minhas pernas fraquejaram. A bengala caiu no chão e agarrei-me à porta da geladeira. A visão turvou-se e eu caí. O tombo ruidoso foi visto por um dos meus netos, que gritou, alertando a todos. Ocorreu um grande alvoroço e correria da varanda em direção à cozinha. A dor se aprofundou. Ouvi lamentos e choro. Vi os rostos atormentados de Lucas e Valentina emoldurados por uma névoa branca. Em seguida, vi o rosto choroso de Mercedes. Tive forças apenas para balbuciar meu amor em relação a ela. Percebi que meu momento chegara antes do que eu desejava.
Abandonaria compulsoriamente meus amados. Ainda ouvi Mercedes pedindo que eu não a deixasse. Uma lágrima correu dos meus olhos. A eternidade clamava minha presença, muito antes da partida de Mercedes.