domingo, 11 de janeiro de 2015

Ócio Criativo - Domenico De Masi

  • Aristóteles adicionava a gramática e o desenho, e em seu tratado sobre a Política recomendava: "A guerra deve ser em função da paz, a atividade em função do ócio, as coisas necessárias e úteis em função das coisas belas... É verdade que é preciso desempenhar uma atividade e batalhar, mas ainda mais necessário é permanecer em paz e gozar do ócio, assim como é preciso fazer coisas necessárias e úteis, mas mais ainda fazer coisas belas.''
Se existem casos concretos mais recentes que podem servir de indicação para uma sociedade baseada no ócio criativo seriam o círculo de Bloomsbury ou a estação zoológica. Anton Dohrn, a respeito dos quais tratei amplamente em A Emoção e a Regra.
Paul Hazard me encanta quando escreve no seu A Crise da Consciência Européia: "Se a característica específica da Europa é de (. . .) não se contentar nunca, de sempre recomeçar a sua própria busca da verdade e da felicidade, há neste ímpeto uma beleza dolorosa.'' No que me diz respeito, encontro esta mesma vocação de busca obstinada e beleza dolorosa também nos povos da América Latina. Muito mais do que em outras partes, é nestes povos, do lado de lá e de cá do Atlântico, que se reencontra o pulso do tempo, a medida humana, a elegância do método.
Para poder viver bem na sociedade pós-industrial é preciso ter mais dinheiro do que na sociedade industrial?
Hans Magnus Enzensberger fez a mesma pergunta na revista Der Spiegel. Na sociedade rural e na industrial, caracterizadas pelo contraste gritante entre pobres analfabetos e ricos escolarizados, estes últimos exibiam a própria opulência sobretudo para surpreender, intimidar e reforçar o poder que tinham e a insuperável distância que os separava da massa.
Mas em que consistirá o luxo na sociedade pós-industrial? Se vive de forma luxuosa, quem possui bens que são escassos pode-se perguntar: o que será escasso no futuro próximo? Segundo Enzensberger, seis coisas serão escassas: o tempo, a autonomia, o espaço, a tranqüilidade, o silêncio e o ambiente ecologicamente saudável. A esses bens cada vez mais "luxuosos'' porque cada vez mais raros, eu somaria também a convivialidade e a beleza.
Como pode ver, trata-se de bens cuja disponibilidade depende mais da sensibilidade, da formação e da cultura do que do dinheiro.
A quem favorece uma civilização baseada no ócio criativo?
A civilização baseada no ócio faz com que vivam melhor até aqueles que trabalham: porque é mais agradável trabalhar entre pessoas que descansam ou se divertem (como acontece com os salva-vidas das praias ou com as modelos) do que entre os mortos ou ao lado dos que .trabalham com eles (como é o caso dos coveiros ou dos legistas).
Como eu já disse, o trabalho é uma profissão, o ócio é uma arte.
Portanto, os escravos do trabalho, aqueles que pararam de pensar, de amar e de jogar para se dedicarem totalmente à carreira, sutilmente invejam e tenazmente combatem os "mestres de vida'' que sabem usufruir do ócio e amam apagar a distinção entre arte e vida, como diria John Cage.
Falar do ócio fez com que tivéssemos uma conversa longa, que exigiu empenho intelectual. Vamos nos conceder um pequeno jogo? O senhor é um viajante?
Decididamente.
Então tente fazer uma viagem com a sua imaginação. Vá ao continente que, na sua mente, mais se concilia de forma natural com o ócio criativo. A África?
A África negra tem o seu fascínio acre e solene. A imensidão dos seus espaços de areia e de verde é soberana e esmaga a nossa fragilidade, fazendo com que nos sintamos e pequenos e inermes diante da natureza exuberante, que é hiper vitoriosa no confronto com o homem e o conduz a fases anteriores.
Fases às quais, sinceramente, neste momento da minha vida eu não tenho a mínima vontade de voltar.
Recordo o mercado de Dacar com as suas cores ofuscantes, as suas mulheres ondulantes como as palmeiras. Recordo as curvas solenes do rio Zaire, que corre imenso numa floresta imensa, do tamanho de um continente.
Mas nesta etapa da minha vida não desejo em torno de mim nem sangue, nem violência, seja dos homens, seja da natureza.
Neste período da minha vida não quero afogar as minhas férias, curtas demais, num lago sem margens como a África negra.
A Ásia?
A Ásia também tem a sua voz atraente o seu calor úmido no qual os corpos e as almas se dissolvem, os seus olhares oblíquos e penetrantes. A Ásia também tem a sua arte sublime, os seus ritos, os seus mitos, as suas vozes submissas, os seus pés descalços, a sua poeira e as suas flautas.
Mas há um mal-estar enorme naquele calor úmido, seus olhares de aço são severos demais, assim como há história demais naqueles ritos e mitos, miséria demais naqueles pés descalços e naquela poeira. Neste momento da minha vida não quero sobrecarregar meu pensamento com filosofia demais e teologia demais.
A América do Norte?
A América do Norte também tem o seu fascínio feito de cimento e frenesi, de desertos vermelhos, bairros efervescentes, artistas enlouquecidos pelos seus excessos e yuppies enlouquecidos pelas sues carências febris.
Mas a América é longe demais, cada vez mais longe, do mundo solidário com que eu sonho. Já corri demais para ainda ter vontade de correr por uma Las Vegas onde até a diversão se reduz a uma forma degenerada de trabalho em tempo integral.
Completada a volta de meio mundo, onde é que desembarcamos?
No Brasil. Em Salvador, nas ruas calçadas do Pelourinho, avermelhadas pelo sangue antigo dos escravos. No Rio, na floresta encantada da Tijuca. Em Ouro Preto, nas frescuras das suas igrejas. Em São Paulo, no desespero de suas favelas. Nas praias de Angra e nas pousadas de Paraty. No plano-piloto de Brasília, entre os honestos edifícios projetados por Niemeyer e os exóticos jardins esculpidos por Burle Marx.
Jorge Amado seria nosso guia: "Escutas? É a chamada insistente dos atabaques na noite misteriosa. Se vieres, soarão ainda mais forte, na batida potente da chamada do santo, e os deuses negros chegarão vindos das florestas da África para dançar em tua honra.
Com os seus vestidos mais bonitos, dançarão as suas danças inesquecíveis... Os ventos de Iemanjá serão só uma doce brisa na noite estrelada. Com ela não verás somente a casca amarela e luminosa da laranja.
Verás também os gomos apodrecidos que dão nojo na boca. Porque assim é a Bahia, mistura de beleza e sofrimento, de abundância e fome, de riso alegre e lágrimas ardentes.''
Em nenhum outro país do mundo a sensualidade, a oralidade, a alegria e a "inclusividade'' conseguem conviver numa síntese tão incandescente. "Um povo mestiço, cordial, civilizado, pobre e sensível habita esta paisagem de sonho", insiste Jorge Amado.
A sensualidade é vivida pelos brasileiros com uma intensidade serena.
Por "oralidade" eu entendo a capacidade de expressar os próprios sentimentos, de falar. Aquela atitude que no Japão, na China, nos países nórdicos, da Inglaterra à Suécia, é substituída pela incomunicabilidade recíproca e, nos casos extremos, pela solidão desesperada. Por "inclusividade'' entendo a disponibilidade de acolher todos os diversos, de fazer conviver pacificamente, sincreticamente, todas as raças da Terra e todos os deuses do céu.
Todas essas coisas se tornam leves graças a uma disponibilidade perene e uma alegria natural, expressa através do corpo, da musicalidade e da dança.
Oscar Niemeyer, que dedicou noventa e dois anos da sua vida à arquitetura, escreveu na parede do seu estúdio uma linda frase que, creio, diz assim: "Mais do que a arquitetura, contam os amigos, a vida e este mundo injusto que devemos resgatar'' É este o lugar: é no Brasil, neste país tão puro e tão contaminado, que eu gostaria de alimentar o meu ócio criativo.
Todos conhecemos a ética do trabalho. Qual é a ética do ócio?
Quando eu trabalho, meu comportamento é ético se evito resultados vantajosos para mim e prejudiciais para os outros.
Quando vivo o ócio, a filosofia é idêntica, ainda que se manifeste em categorias diferentes. Posso viver o ócio prevaricando, roubando, violentando, entediando ou explorando. Ou posso vivê-lo com vantagens para mim e para os outros, fazendo com que eu e os outros sejamos felizes, sem prejudicar ninguém. Neste caso, e só neste caso, atinjo a plenitude do conhecimento e da qualidade de vida.
Naquele bonito conto de Borges, quando o discípulo pergunta se o paraíso existe, o mestre Paracelso responde dizendo que tem certeza de que o paraíso existe: e é nesta nossa terra. Mas o inferno também existe: e consiste em não se dar conta de que vivemos num paraíso.

  • Ócio Criativo - A guerra deve ser em função da paz ...
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